No dia em que aqui cheguei, primeiro de Setembro, senti que quem estava me olhava com desconfiança. Pouco ou nada diziam, nem deram sinal de tentar evitar que ficasse com as malas todas à porta enquanto a Annie não aparecia. Não fosse a
hippie salvar-me e teria, de facto, acontecido. Umas horas depois de mim chegaram as duas americanas e, no dia seguinte, a Mica. Passou-se o mesmo com todas: a sensação de estar a mais. Entretanto, com o tempo e a convivência, tudo isso já passou. Outro dia, diziam-nos que a intenção não era essa. Enfim, por princípio, e até prova de desmerecimento válido, eu opto sempre pela simpatia. Não entendo muito bem as caras fechadas. Mas pronto, agora até damos umas boas gargalhadas. Contaram-me recentemente que havia quem julgasse aqui que eu era norueguesa. Norueguesa! Eu! O meu metro e oitenta, a alva tez, cabelos louros e aquosos olhos azuis, claro! Alguém tinha espalhado esse boato porque, em não se recordando de que país europeu eu vinha, calculou arriscar na Noruega um ligeiro tiro ao lado. Porque, no fundo, que diferença têm Portugal e a Noruega se ambos ficam na Europa?? O raciocínio é mais ou menos este. Aliás, chegada havia dois dias, perguntaram-me quem tinha descoberto Portugal. E quando. [Juro] Houve então uma pausa,
aquele silêncio na mesa, enquanto eu dava corda às sinapses e tentava entender a pergunta. Porque, no imediato, pensei tratar-se de qualquer coisa mais complexa, que eu não estava a alcançar. Ainda repeti, abanando a cabeça, baralhada,
quem descobriu Portugal, mas como?..... E a voz foi-se-me sumindo à medida que a incredulidade aumentava. Os rostos deles (todos!) suspensos no meu. Acabei por conseguir soltar um
bom, ninguém descobriu, a nossa história é diferente da vossa. Ao que assentiram, parecendo elucidados e, de súbito, também mais iluminados. Como se se tivessem lembrado de qualquer coisa. É engraçado o olho com que vemos o mundo.
Bom, mas voltemos à Noruega. A senhora que trata de algumas limpezas e organização aqui no CIES contou-me que achou deveras estranha a chegada de uma norueguesa vinda do Brasil (porque lá isso sabiam), que falava português, tinha um aspecto muito pouco gringo e, além do mais, se dirigia a ela num castelhano de forte sotaque espanhol – julgo que aqui basta que se diga “tu” em vez de “vos” para logo se ser catalogado. Dizem-me agora, em pose de assunto sério, com pancadinha nas costas e algum orgulho, que já estou melhor.
"Se te cambia el acento". Que seria uma vergonha andar por aqui a falar como os espanhóis! Enfim, uma risota. Parece que, na sede do CIES, ainda há muita gente que se refere à “norueguesa”. Não sei se lhes tire essa ilusão… Ainda não decidi se hei-de ser a portuguesa, a brasileira, a espanhola ou a norueguesa.
Os dias com os monos complicam-se. A Annie anda a ficar mais séria com o nosso treino porque o stress nova-iorquino recomeça a subir-lhe à cabeça. Portanto, temos que tratar de aprender rapidinho o etograma (lista de comportamentos que interessa registar) e de deixar de baralhar umas caras macacas com as outras. Entender, de uma vez por todas, que o Trucho não é o Jesus e que a Chicca e a Estela, ainda que irmãs, se podem distinguir através de uma mancha na bochecha direita. Como se nos escapa tão conspícua característica, de facto, não sei! O que vale é que, apesar de o grupo ser constituído por vinte e sete animais, só vamos analisar os adultos. Quatro machos e sete fêmeas. Alessandro, dominante de serviço, distingue-se pelo porte altivo, atitude blazé e olhos demasiado juntos. Sempre que me mira de frente tenho a nítida sensação de que é vesgo, o que não se coaduna muito bem com a posição que ocupa na hierarquia. Cá no meu mundo, ora pois! Mas gosto dele, é tranquilo e transmite autoridade.
A fêmea dominante chama-se Thelma, tem a pelagem muito escura, uns olhinhos meio asiáticos e o nariz achatado. Apesar de ser dominante, não é aquela que tem mais crias. Na verdade, é a Clara, criatura deveras subordinada, que tem mostrado ser a grande parideira do grupo. O que me intriga. Supõe-se que uma alta posição social se correlacione directamente com o
fitness do animal. Ou seja, o facto de ter um elevado
status deveria fazer com que os seus genes fossem transmitidos à geração seguinte com maior representatividade do que os dos outros indivíduos do grupo. Sei que quantidade não é sinónimo de qualidade e que os filhos da Clara podem vir a ser uns franganotes que mal se consigam reproduzir eles próprios. Pode ser… Mas se alguns já estão crescidinhos e sem aparentes problemas, bom, não sei o que pensar.
Ontem à tarde o Jesus e a Yoli decidiram cortejar-se. E, como lhes foge o pezinho para o exibicionismo, acharam por bem fazê-lo no “
paseo superior”, à vista de toda e qualquer almita turista. Que delirou, pois que os bichos guincham e fazem caretas um ao outro, ladeando a cabeça com denguice para a direita e a esquerda. Tem muita graça. A maior parte dos turistas, para dizer a verdade, não se apercebe de que assiste a um comportamento menos vulgar. Mas gostam na mesma. Entusiasmam-se. Chegam a tornar-se difíceis de controlar. A cena tende a começar com um par de argentinas cinquentonas, gorduchas e bem oxigenadas, a exclamar a plenos pulmões:
ai, ai, mira, mira los monitos!! Ao que se segue uma tropelia humana, acercando-se dos bichos.
Uuhhhhh…mira… que hermosos! Y la cria con su mamá…. Re lindo!! Em questão de segundos temos um aglomerado de trinta pessoas, de diversas idades e aspectos, em aparente adoração aos macacos. E digo aparente porque – e isto é algo que me surpreende sempre – tão depressa chegam como, de repente, se desmaterializam. Como se a observação tivesse prazo de validade, o suficiente para levantarem bem alto, acima das cabeças, um número relevante de máquinas fotográficas que disparam com sofreguidão. E então seguem o seu caminho, até ao entretenimento seguinte. Um tucano. Um coati.
Lo que sea. Felizmente.
Para seguir monitos, há-que ter costela alentejana. Pouca pressa, mais olho para ver que perna para caminhar. Um dos erros que cometíamos amiúde, de início, era
get ahead of the monkeys. Sai-me isto em inglês porque a frequência com que ocorria era tal, que a frase se tornou quase uma expressão do quotidiano entre nós. Agora já aprendemos. Eu e a Mica, numa atitude claramente mais latina, deixamo-nos ficar até à última, de preferência espojadas e com borboletas mil a pousarem-nos no nariz, nas mãos e na roupa, até termos a certeza absoluta de que os macacos estão em movimento. Aí, então, damos corda aos sapatos. Uma espécie de
jogging em perseguição amigável. Corridinhas ocasionais. Mas funciona. Quando no campo e ao alcance da voz, comunicamos umas com as outras através de “ops”. Um “op” gritado para o ar significa “estou aqui”. Dois “ops” dizem “estou aqui e tenho macacos!”. E três “ops” pedem à outra pessoa que largue o que está a fazer e venha ao nosso encontro. Claro que temos rádios, mas assim poupa-se energia (além do que nem sempre nos organizamos com as cargas dos mesmos e há dias em que, pela escura e remelenta madrugada, nos apercebemos que não há baterias carregadas). À conta deste original modo de comunicação, tive um episódio caricato – também nos primeiros dias de macaquice. Hoje sei que não posso pôr-me aos “ops” em zonas onde haja turistas.
Just too embaracing… Mas, naquela nervoseira inicial, consegui soltar um sonoro “op” à passagem do comboio carregadinho de pessoas que voltavam da
Garganta del Diablo. Qual não é o meu choque quando me apercebo que, nas minhas costas, uma resma de gente me respondia com o grito do Tarzan! Virei-me e vesti um ar duro mas o que queria mesmo era desmanchar-me a rir. Visualize-se o modelito completo: galochas até ao joelho, calças enfiadas dentro das mesmas, típica camisa axadrezada para evitar picadas de mosquito, colete cheio de bolsos de onde saem rádios, bússolas, blocos de notas e afins penduricalhos e, para terminar (o
ex-libris), lenço na cabeça! É que carracinhas e ácaros no corpo ainda vá, tudo bem, agora bichezas no cabelo eu cá dispenso. E como as palas dos chapéus não deixam olhar para cima, para as copas das árvores, muitas de nós optam pelo lenço. O que, convenhamos, acrescenta caricatura ao figurino. Nesse mesmo dia, uns minutos depois, a Mica saiu afogueada de uma mancha de floresta directamente para uma zona de
paseo onde as pessoas vão comprar viagens de barco e, dirigindo-se ao primeiro que passava - sem, no entanto, deixar de buscar constantemente os macacos na vegetação – soltou-lhe um aflito:
donde estoy? [Porque andar no meio das árvores e arbustos pode mesmo desorientar]. O senhor, ao que parece, assustou-se. Eu também me assustaria se um animal tão grande me saltasse de dentro da vegetação. Respondeu-lhe, a medo:
en el Parque… Creio que lhe deve ter associado um qualquer desequilíbrio mental. E ela, em vez de insistir ou se estender em explicações, encolheu ombros e voltou a meter-se na floresta. Ainda agora dou gargalhadas ao imaginar a cena.
Portanto, como se vê, isto é divertido. Só com a chuva é que ainda não me dou bem.
Deixo-vos alguns dos meus amigos.=)

