1 de outubro de 2008

oitavo

Piso as galochas todas as manhãs para garantir que nenhum bicho fez delas casa durante a noite. Calco com o propriamente dito calcanhar, primeiro numa e depois noutra. Viro-as de pernas para o ar e bato com elas no chão para que o hipotético hóspede seja obrigado a sair. Já sem temer pela vida, enfio, por fim, um e outro pé. O último preparativo para o dia seguir. Então a caminhada de meia-hora pelo sendero Macuco, até atingir o R13, trilho que dá acesso ao miradouro onde, dez minutos depois, se vêem os animais ainda a dormir no bambú norte. Enrolam-se em bolas de pêlo e juntam-se aos três e quatro para afastar o frio. É engraçado vê-los acordar. Espreguiçam-se, esticam bem a cauda, abanam alguns ramos e logo começam à procura das melhores sementes para o pequeno-almoço. Estes bambús em que actualmente dormem só florescem a cada trinta-setenta anos, dá para acreditar? Repito o intervalo “trinta-setenta” - que me parece ridículo na sua imprecisão - tal como mo contaram. Ainda que seja trinta, nem queria acreditar que calhou eu estar aqui para o presenciar. Nenhum dos guardas do parque alguma vez o tinha visto! E facilita-nos bastante o trabalho, por agora, pois os macacos estão obcecados pelas sementes e recorrem aos bambús diariamente. Dentro de dois meses, ao que parece, acaba-se a mama.

Abaixo do bambú, a praia Apepú (e rima!). Uma inesperada língua de areia que nos dá acesso ao rio e a que há uns dias não resisti. Pisamos sedimentos cor-de-fogo, as rochas à volta bem negras e, de súbito, lembramos aquele livro de geologia que lá temos em casa, numa prateleira. Vulcânicas. São rochas vulcânicas. Disse-me a Sofia há uns tempos que as cataratas se formaram em três episódios de vulcanismo distintos. Uma, duas, três camadas. Interessante.

Da praia Apepú para trás, nas minhas costas, a floresta ergue-se e mal a reconheço sob a nova perspectiva. A encosta é íngreme e a parede de árvores parece engolir-nos como uma onda. Vemos os macacos e os dois bambús, ao entardecer. Digerem a ceia de sementes, preparando-se agora para dormir com o sol que baixa. Deixo pegadas na areia virgem com o gosto da criança que fui. Abandono as botas, as meias, o lenço, a mochila e o colete, empilho tudo junto a um tronco esquecido e dou saltos até à água. Está fria. Vou entrando. Fica fresca. Chega-me à cintura e noto-lhe a corrente. Fico. Deixo-me cair para trás e mergulho no verde desconhecido. Sabe a terra e a rocha. Estranho a falta de sal, apesar de estar habituada à barragem. Onde está o sal?, pergunto em voz alta. A Jen responde-me que não gosta de água salgada, que lhe faz confusão (confusão?... como é possível?). Mas gostas de praia?, volto a querer saber. Bem, já estive no oceano três vezes e gostei, mas a água parece que tem algo a mais! Três vezes… De repente, sinto-me estúpida. O mundo não está feito à imagem da Sara e existe uma montanha de gente que não vive junto à costa, não vai ver o mar em dias solarengos de Inverno nem planeia férias à volta das praias mais a propósito. Mais tarde, em casa, pergunto aos outros a que distância vivem do mar. Tirando o Dardo, que é de Roma, as respostas variam entre as quatro horas e o dia de viagem. Perto, concluem alguns.

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A comunidade Guarani em Misiones é muito grande. Dentro dos grupos aborígenes deste país, sem dúvida representativa. Discute-se, por vezes, se foi a força ou a fraqueza que os manteve, enquanto outros pereceram, e se os seus costumes têm espaço para ser mantidos ou não. Em Puerto Iguazu existem duas ou três comunidades distintas, na periferia da cidade, e muitos dos seus constituintes estão mais ou menos integrados na vida dos “brancos”. Fermino é um deles, homem novo que trabalha para o CIES sempre que é preciso montar plataformas no cimo das árvores, abrir trilhos para iniciar projectos, ou seguir macacos na falta de pessoal. Sabe sempre onde os bichos andam. É uma personagem engraçada, o Fermino. Fruto de uma mistura de sabedorias e culturas, agarrado às suas crenças mas curioso para o mundo. Acredita numa variedade de deuses, deusas, e respectivos filhos, não entende que a Terra possa ser redonda, mas quer saber o que é um electrão. Vê nas crianças elementos sagrados da Natureza e dá pouco valor ao dinheiro mas emprestou-nos um DVD com um documentário sobre o seu povo. Duvido que tenha televisão e leitor de DVD para o ver e pergunto-me se o guardará, como oferta do produtor, dentro de um cesto artesanal na sua casa de adobe. É, de facto, difícil entender os limites destas diferenças. As comunidades aborígenes tendem a fechar-se, talvez como único modo de conservação, e o que vemos de fora deixa muitas reticências no ar. As perspectivas de sucesso, no entanto, parecem-me poucas. Na Argentina, as populações originais e os seus assuntos estão sob a alçada do departamento do governo para a gestão dos parques naturais e (suposta) manutenção da biodiversidade. Animais, plantas e índios, portanto. Não são considerados pessoas como os demais, o que poderia fazer sentido dado que são distintos dos “ocidentais” e as suas vidas devem ser vistas e pensadas com respeito pela diferença. Mas, na verdade, estar, segundo quem governa, dentro do pacote “parque naturais” significa apenas que se vai passar por cima com menos alarido. As florestas são abatidas a uma velocidade alucinante, os animais empurrados para locais cada vez mais distantes e apertados e, a prazo, não há espaço para quem quer usufruir dos recursos sem pressa. “Fazer” é a palavra que marca as nossas vidas. Índios que não se ocupam, que não têm um trabalho que se traduz em dinheiro, não vão ter como subsistir. A selva desaparece e eles encontram-se isolados do mundo, mal ajustados ao espaço, carentes de um salto evolutivo que lhes ensine as novas regras. Ser absorvido ou morrer. É isso.

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Ontem choveu “pa caraças”. Olvidada do poncho (permitam-me a espanholice, é uma palavra de que gosto), a molha que apanhei não foi brincadeira. Brincadeira parece, no entanto, o jogo a que me entrego com os óculos nestes dias molhados. Preciso deles para seguir monos, isso é ponto assente. Então chove e enchem-se de pingos e já não sei se vejo melhor ou pior com eles. Mas mantenho-os. Dobro o pescoço para olhar para cima e não perder os animais que saltam de árvore em árvore e… as lentes embaciam! Tiro os óculos. Limpo-os à t-shirt, volto a colocar. Mais pingos de chuva. Um pouco adiante, mais nevoeiro. Ao fim de uma hora, a roupa ensopada já não permite limpezas. Desgraça. Não me divirto nem um bocadinho com este jogo, não há dia em que não perca…

O reverso de um dia assim é, simplesmente, voltar a casa. É em momentos assim que adoro ser humana. Chegada a pingar água do cabelo e da roupa, enfiei-me no duche. Mais quente, seca, com a roupa posta para lavar, dirigi-me à cozinha onde, para grande espanto e satisfação, a Gillian nos tinha deixado um termo com chocolate quente e um resto de esparguete do almoço. Divino! Decidimos então preparar uma sessão de cinema no imenso quarto de dois por três metros que nos coube. Um dos colchões no chão, encostado à minha cama e o computador em cima de uma cadeira. Lugar para cinco e uma garrafa de tinto. “O Fabuloso Destino de Amélie”. A chuva, lá fora, já escuro, não fazia cerimónia. Parecia que o céu desabava, que tudo tinha que parar debaixo da cortina espessa de água que ruidosamente nos dava conta de si. Como dizer-lhe que não?

10 comentários:

Jose Ruah disse...

Fantástico relato.
Consegui visualizar perfeitamente todos os cenários.

Candida Cortez disse...

É deveras impressionante como consegues transmitir-nos tantas sensações,emoções e histórias.A chuva,a molha,a praia (sem oceano)os índios Guarani...Um beijinho grande dos avós Diogo e Tita

Candida Cortez disse...

É deveras impressionante como consegues transmitir-nos tantas sensações,emoções e histórias.A chuva,a molha,a praia (sem oceano)os índios Guarani...Um beijinho grande dos avós Diogo e Tita

Candida Cortez disse...

É deveras impressionante como consegues transmitir-nos tantas sensações,emoções e histórias.A chuva,a molha,a praia (sem oceano)os índios Guarani...Um beijinho grande dos avós Diogo e Tita

Candida Cortez disse...

A minha ignorância e falta de jeito já deu como resultado triplicar o meu simples comentário.Enfimé da idade.Mais um beijo Tita

Candida Cortez disse...

A minha ignorância e falta de jeito já deu como resultado triplicar o meu simples comentário.Enfimé da idade.Mais um beijo Tita

C.M. disse...

Olá, guapa!
As tuas pinturas escritas vão sempre melhorando:-)
Tens a sorte de, para além de observar los monitos, poderes apreciar de perto uma grande diversidade humana.
Desde as criaturas "civilizadas" que não conhecem o prazer de um fim de tarde soalheiro à beira mar, até aos guaranis, aparentemente parados no tempo á espera de serem absorvidos... é de aproveitar!
Na comunidade índia que visitei tive a sensação de que eles viviam uma espécie de "esquizofrenia" dividos entre a enorme vontade de preservar a natureza e algumas das suas tradições e a necessidade de se juntarem ao "mundo civilizado" na luta pela sobrevivência.
Banho quente, chuva lá fora, tinto e filme, hummm, nice program.
O "Fabuloso destino de Amélie" tem para mim um significado especial. Como deves calcular encontrar um filme que me agrade tanto a mim como á M. daqui de casa, não é fácil, e este é dos que partilhamos regularmente. Adquirimos também o CD da banda sonora para podermos ouvir no carro durante as viagens!
Novidades (pouco precisas) da civilização:
O Benfica ganhou ao Sporting
A Tori Amos lançou um novo album (que ainda não tenho, mas tenciono adquirir)
Os Stomp vêm cá ainda não sei quando mas tenciono informar-me
O resto continua tudo na mesma.
Beijocas

Unknown disse...

Como compreendo o Fermino, ele na selva e eu a maçã que caiu longe da árvore. Olvidado é bonito, mas experimenta facínora, tem um som divinal. EHEEHHEH ou então: Ginko Biloba, é fascinante. :-)

beijos

Unknown disse...

"3 vezes no oceano"??? Oh God! Como é possível?! Eu era muito infeliz se não pudesse ver o mar sempre que me apetecesse e banhar-me nele como se não houvesse amanhã! Mas de facto é como dizes...existe um montanhão de gente que não vive junto à costa e não pode apreciar certas coisas boas da vida! :)
Mais uma vez adorei a descrição de tudo o resto...foi como se tivesse a sentir a molha que tu apanhaste...:)
Por cá a chuva ainda não chegou mas o outouno já chegou em grande...dias solarentos e vento gelado...é assim que têm sido os dias do lado de cá do oceano.
Continua a dar notícias...:)

Beijo Beijo,
Pima


P.S - Avó, já é fantástico estar a partilhar connosco este mundo da Net e Blogs! Não importa se repete os comentários ou não... :) Beijinho

Aziz disse...

Olá prima!
Estive agora a ler os posts desde o primeiro e confesso-me cheio de vontade de aparecer no Iguaçu para ver de perto o que descreves. A única coisa que me pára são as babas nas virilhas :D
Nao conhecia este esse teu talento para a escrita! Muito bom!
Ja subscrevi o feed e fico a acompanhar!
Bjs,

Aziz (o turco)