23 de outubro de 2008

décimo primeiro

Costumo gostar de Outubro. Chega depois do fim do Verão e tudo o que vem depois de um fim tem que ser apreciado. Já nos mentalizámos que a mudança aconteceu, já não nos afoga o calor, já no campo se estendem abóboras ao sol e folhas de cores quentes. Nota-se que a luz muda, doura. Na cidade, na rua, vendem-se castanhas sem graça. Se há coisa que vi mudar ao longo do meu próprio tempo, foi o sabor desses frutos assados por gente de dedos negros. [Ao som do papel de jornal] Com o preço a subir e a qualidade a descer, deixei-me disso. Contento-me em reabrir a arca e olhar para as camisolas mais quentes com alguma nostalgia nas mãos. Trato de ignorar os dias ainda quentes. E, desde há uns anos, relembro viagens pelo norte, sanduíches e moleza à beira-Douro, aldeias ao entardecer, vacas no caminho, lenha cortada, o conta-quilómetros a passar, muros de granito, olhos azuis a sorrir, gente curvada de negro. Ideias soltas.

Este Outubro quase passa por mim. Vem estranho e dá-me cheiros doces a flor e a quente, encharca-me todas as semanas, troveja, pica, cria-me novos hábitos. Estende-me de novo os dias, em vez de os encurtar, e à minha interrogação instintiva, limita-se a encolher os ombros. Não quer saber, reacende a vibração que trazia na mala e sopra depois a chama, ignorante de que aqui estou, algo esbugalhada. Estranho.

Gosto de Outubro. “Lá vamos nós, abre os olhos”, diz-me.

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Argentinos e principalmente missioneiros, têm nas empadas uma tradição de que não deixam de se gabar. Observação redundante, dirão alguns, de que não se gaba esta gente? Ora pois. Diz-se por esta América que, para um argentino cometer suicídio, basta atirar-se do seu próprio ego abaixo. Ou que a definição de ego é: “aquele pequenino argentino que todos trazemos dentro de nós”. Adoro! Não é que sejam todos assim, nem que ostentem o orgulho à vista desarmada. De facto, não tenho dados suficientes para fazer justiça aos dizeres e resta-me comentar que as empadas são boas (apesar de só as ter provado vegetarianas, o que suponho que conte apenas pela metade).

Certa noite fizeram-se as tais empadas. A massa foi comprada no supermercado para que uma pobre desgraçada não ocupasse toda a tarde a enrolar, estender e amassar na cozinha, e fizeram-se as ditas. Carne e cebola para um lado, carne, ovo e azeitona, para outro, milho e cebola para um lado, espinafres para outro. Sim, estavam boas. Convidámos o Martín para que tratasse de fechar a massa em ondinhas – o que parece que é uma arte do noroeste do país, de onde ele é – e a Mica dedicou-se aos recheios. Foi depois das empadas que nos ocorreu falar de desenhos animados. Conversa mais que recorrente entre quem já sente que tem gerações abaixo de si e encontra, assim, ponto de referência para uma infância em comum. Em Portugal, volta não volta, lá estamos a debater as piadas do Bocas ou as cores das Tartarugas Ninja. Se o amor da Julieta era realmente o Dartacão. Enfim, coisas da vida.

Só que foi aí que percebi. Dizer que este mundo é global não é, afinal, uma ilusão. Acontece, no entanto, que o ouvimos tantas vezes repetir que a noção acaba por passar completamente ao lado - como qualquer aula de história no sexto ano, depois do almoço, num dia de calor. Aperceber-me de que sou uma pessoa mais que globalizada faz-me pensar nos meus pais, nos meus avós… Quero por força imaginar fronteiras num mundo em que, agora, mal as encontro. Terão existido? Ou teremos sido sempre todos iguais e eu apenas verifico agora, neste ponto de latitude longínqua, aquilo que, antes de mim, estava afinal concluído?

Vimos muitos dos mesmos bonecos – apenas variavam os nomes que em cada língua se lhes dava (Kermet the frog, La Rana René, Sapo Cocas). Vimos muitos dos mesmos filmes. Ouvimos muita da mesma música. A nove mil quilómetros de casa, não encontro nestas pessoas qualquer fundamental linha que as distinga de mim própria. Borra-se o cultural com o individual e são apenas gente que sabe mais ou menos o mesmo que eu e partilha mais ou menos as minhas ideias. Fico indecisa entre o positivo que é fazer parte de um grupo tão amplo e o negativo de me restar menos para descobrir.

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Trovoada! Agora mesmo, enquanto escrevo, enquanto a banda sonora de Cinema Paradiso me enche os ouvidos, cai uma trovoada que bate fundíssimo no peito. Cresce a cada trovão, louca, frenética, alimentada pela água que já condensa em força e faz estalar todas as folhas mortas que cobrem o chão da floresta. Hmmm…. Que privilégio estar aqui!

Check out o que passeava pelo jardim há dois dias:

16 de outubro de 2008

décimo

- Sara, vos tomás mate? – perguntou-me Guillermo, o condutor do autocarro que me dera entrada logo ali junto à estação de campo. Eram sete e um quarto da manhã, um céu levemente esbranquiçado soprava promessas de alguma frescura e a floresta acelerava aos dois lados do veículo. Entendi então porque paráramos nas cancelas do Parque, porque saíra ele em direcção à casita com o termo na mão. Ia por água quente. O tal hábito inquestionável, certo e seguro como ser argentino: a toma do mate. Principalmente para se começar o dia. Quando falta o mate, o nervosismo é tal como se comida faltasse.

- Bueno, dale – respondi, sem pensar. Ainda não percebi se é de bom tom recusar um mate ou em que situações o posso fazer. Agradecer é que não.

Sorvi um pequeno trago com cuidado. O mais frequente é queimar a língua e aturar alguma insensibilidade gustativa ao longo do resto do dia. Amarga, a bebida. Melhor do que a que temos em casa, no entanto; diria “mais encorpada” e esperaria que me entendessem melhor. Perguntei-lhe a marca, prontamente a esqueci. Para quem não bebe café, o mate funciona como um tiro certeiro no cérebro e dá ao corpo uma semelhante sensação de energia. Sem que o estômago se revolte.

Saltei do autocarro, pronta para acção. Que não era muita – desayuno, comprar pão e outros víveres, pensos rápidos e pilhas, saber preços e horários para a Foz do Iguaçu. Regressar, com sorte, a tempo de fotografar a garganta. O que acabou por não acontecer.

Às vezes preciso de inventar desculpas para me afastar um pouco do CIES porque até no meio da selva há espaço para gaiolas.

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A trabalhar, há dias em que me sinto Attenborough. Quase sempre, para ser mais precisa. Muita da floresta aqui é fruto de crescimento secundário, o que quer dizer que, para sair de um trilho, temos que pisar, afastar e por vezes cortar muita vegetação.

Não é que tenha sido sempre assim. O problema é que o corte de árvores foi permitido até há cerca de trinta ou quarenta anos e a floresta não teve ainda tempo de recuperar. As árvores mais altas terão à volta de quinze metros de altura e a média andará pelos dez. Ao contrário do que acontece em florestas tropicais como a da Amazónia, em que a densidade de gigantes de quarenta metros cria um ambiente de sombra que impede a sobrevivência de uma camada intermédia de plantas e “limpa” o caminho para os investigadores, aqui o tal crescimento secundário é fácil.


Por outro lado, já vi que isso permite que os macacos sintam alguma segurança no solo. Os dias começam agora a ficar quentes a sério e nota-se nos animais uma paragem obrigatória à hora da siesta, altura em que os adultos se catam ou dormem e os juvenis brincam. Como não sentir-se Attenborough quando quatro, cinco, seis monitos se perseguem uns aos outros à nossa volta? Quando se enrolam em cambalhotas de wrestling a três metros de distância? Quando se baralham no meio das cavalgadas e vêm direitos a nós, estancando de repente ante o obstáculo que umas pernas humanas representam e fixando-nos com aqueles olhinhos inquisitivos? Não sei se o fariam se o espaço fosse mais aberto. E agradeço ao senhor doutor Jensen o facto de ter habituado de tal modo este grupo aos investigadores que posso chegar e assistir a comportamentos descontraídos como estes. Complicado tentar não interagir com os animais, não lhes sorrir, não lhes falar nem lhes imitar as expressões engraçadas. Sim, claro que acabamos por fazê-lo.

Recien vuelvo de la garganta… Hoje chove, nada de estrondoso mas chove. Por sorte, é o meu dia livre. Acordei às cinco da manhã com os trovões e depois de novo às oito, com o cérebro a achar demasiada a lazeira. Levantei-me na calma, dediquei-me ao skype na calma, conversei com quem tinha turno da tarde (na calma) e, como brinde, ao caminhar para o quarto, ouvi restolhar em cima. Os macacos chegavam! O sítio onde vivemos está dentro do seu território e, por isso, de vez em quando passam por aqui. Deitam-se no telhado da cozinha a apanhar sol ou usam-no para brincar, comem nas árvores em volta e posam para as fotografias.








Falei de viagens com a Jen, aprendi algo de Photoshop com o Dardo e esperei pela Mica para ir até à garganta. Depois de comer as sobras da pizza de ontem no comboio turístico, caminhámos a longa passadeira à chuva, em passo-lesma como se espera de quem nada mais tem que fazer, e vimos a água cair no buraco. Num segundo, passa nestas cataratas água suficiente para encher garrafas de um litro, pô-las em fileira, e chegar daqui a Buenos Aires. Não consigo imaginar semelhante quantidade. Num segundo.

12 de outubro de 2008

[um tucano, por fim!]


Bicharocos muito engraçados. Parecem-me desenhos, como pintados por graça, perfeitamente delineados e contrastados num mundo de mimetismos. Até as patas são azuis. Membranosas, não sei bem porquê... E os sons que fazem são iguais - mas iguais! - aos dos porcos. Muita intriga me deu a primeira vez que ouvi "porcos" na floresta. :)))

11 de outubro de 2008

nôno

Quase cem por cento de Puerto Iguazu vive do turismo, disse-me um guia. Na altura achei exagero, mas agora que já dei umas quantas voltas pela cidade, acredito que seja verdade. Restaurantes, lojecas, pontos de internet, agências de turismo, supermercados com preços para turista, vendedores de rua, hotéis e pousadas, inúmeras empresas a explorar as camionetas que vão e vêm das cataratas… Não há espaço para mais. Não me parece que se produza ou fabrique o que quer que seja.

Tirando o facto de ser um lugar pacato e rodeado de verde, a grande diferença que noto entre Puerto Iguazu e as cidades europeias que conheço é que, aqui, tudo parece velho. Os carros, as ruas, os edifícios… Até construções que sei serem recentes, como o terminal rodoviário e alguns hotéis pelo caminho, ganham um distinto ar anos sessenta quando atento neles. Os próprios autocarros que circulam no centro me transportam directamente àquela série portuguesa em que a Rita Blanco se veste e penteia como a minha avó nas fotografias antigas. Desta sensação, o exemplo mais flagrante que tenho é o do hospital. Hospital Dr.ª Marta Shwartz [há também à escolha, na versão “Marta Shwartz”, um museu, uma rua e uma placa onde se caracteriza a senhora como “el angelito de Puerto Iguazu”]. Bom, mas o hospital é algo digno de ver e reconhecer que, por muito que nos queixemos, temos em Portugal um privilegiado (ainda que burocrático e desorganizado) sistema de saúde. Com listas de espera e tudo – e atenção que acho bem que o critiquemos! Nada daquilo a que estamos habituados nos prepara para uma América do sul. Pelo menos não a mim, que ando sempre meio distraída.

Na sala de espera, cores alternantes entre o creme e o castanho vão sendo descascadas da parede, lenta e seguramente pela erosão. Posters alusivos a cuidados de saúde, meio rasgados e amarelecidos pelo tempo, tentam em vão cumprir uma função apelativa. As cadeiras em que nos sentamos são mais anos oitenta, pois que, de repente, me lembram compras no “Pão de Açúcar” da Avenida Estados Unidos da América, ainda pela mão dos progenitores, vai agora para uns quinhentos anos. Plásticas, quebradiças e com a mesma duvidosa cor acastanhada. Rangem as dores dos pacientes que se movem, incómodos, enquanto esperam. E a espera? Essa sim, é-nos bastante familiar. Corredores carregados de gente que se encosta, se abana e se impacienta (não era suposto, por definição, serem pacientes?). Gente que cheira a gente debaixo do calor subtropical. Portas anos sessenta que dão para gabinetes anos sessenta. Gordinhas de óculos na ponta de nariz, na recepção, que nos informam que a senhorita Reyna ainda não chegou mas que podemos entrar e esperar em tal sala, quando tal sala acaba por ser o gabinete onde atende, cheio de utensílios médicos à mão de semear. Enfermeiros que dão injecções sem luvas. Casas-de-banho sujas onde tudo parece ter sido deixado a meio: há lugar marcada na parede para um espelho, para uma saboneteira, mas não os encontramos em lugar algum; a tampa do autoclismo também decidiu migrar para parte incerta. Resta-nos o papel higiénico e agradecemos por isso.

E antes que se apoquentem os familiares mais apoquentativos, calma!, fui apenas ver de umas bolhas que me apareceram na pele, provocadas por qualquer substância na floresta. Xixi de aranha ou planta urticante, quiçá. Reacção alérgica de branco em terra de índio, por certo. Um creme e já está a passar.

Como terão reparado visitantes mais assíduos, os últimos dias foram menos propícios ao relato, esse registo. Senti-me cansada, dormi sempre que tive oportunidade e havia uma dorzita de cabeça que não queria abandonar-me. Ligeira mas presente.

Para mudar de ares fui até Tres Fronteras. Na ponta da cidade, é um miradouro de onde se observa a junção dos rios Iguaçu e Paraná. À esquerda estende-se o Paraguai, em frente o Brasil.
Ao contrário do que esperava, encontrei poucos turistas no alto, junto ao marco com as cores argentinas e os quiosques de artesanato. Deixei-me ficar um bocado a olhar os rios. Soprava uma aragem a que quase se podia chamar vento. Mal, mas podia. E quando corre o vento as ideias também voam. Observei as minhas deslizar encosta abaixo, por cima das copas que ondulavam, sobre as folhas tenras de verde, e vi como rodopiavam pelo caminho. Iam tranquilas e contentes. A primeira, orgulhosa de o ser, era a ideia das americanas reunidas à volta do computador assistindo aos debates políticos, do quanto se inquietam com a nacionalização dos bancos e do que tremem à simples menção de termos como “comunitário” e “social”. Quase soltei uma gargalhada ao vê-la assim, tão gorda e inchada ideia, aos rebolões a caminho do rio. [rio que vai castanho; rio de dulce de leche, ocorre-me; corre e mimetiza os sulcos que deixamos no doce quando lhe passamos a colher] Seguiu-se a mais leve, luminosa ideia do novo bebé do grupo, nascido há quatro dias da macaca Kika. Uma lagarta com pêlo e cara enrugada que ela leva no dorso, à volta do pescoço, qual criminosa estola de vison. O grupo todo anda em adoração à cria.

Mais cinzentona e arrastando os pés, apareceu então a ideia número três. Falou-me da chuva incessante, apresentou estatísticas, previsões, ameaças! Ilustrou a sua palestra com imagens dos trilhos da zona oeste inundados e de uma Sara parando a cada dez metros para despejar a água de dentro das galochas. Fiz que não vi. Atrás desta ideia, adivinhei uns pequeninos olhos tímidos que buscavam passar despercebidos. Estiquei-me, espreitei, e lá estava uma quarta existência: o cansaço, agrilhoado, coitado. Logo atrás, no entanto, espicaçava-o, contente e aos pinotes, a ideia do cheiro a Primavera. Vinha colorida, sorridente e era a única que verdadeiramente flutuava – ainda que argentina, consegui reconhecer-lhe a face num dia fresco de aragem como aquele.

Depois, afastada para marcar a sua importância, e silenciosa como a noite, vinha a leitura, a fechar o cortejo. Em passo lento, com olhos perdidos e sem precisar de ponto, declamava para dentro. Murmurava. Que dizia? Tudo aquilo que naturalmente já sabemos, mas de um modo que se me colou ao crânio para não mais sair. O de Cortázar.

4 de outubro de 2008

1 de outubro de 2008

oitavo

Piso as galochas todas as manhãs para garantir que nenhum bicho fez delas casa durante a noite. Calco com o propriamente dito calcanhar, primeiro numa e depois noutra. Viro-as de pernas para o ar e bato com elas no chão para que o hipotético hóspede seja obrigado a sair. Já sem temer pela vida, enfio, por fim, um e outro pé. O último preparativo para o dia seguir. Então a caminhada de meia-hora pelo sendero Macuco, até atingir o R13, trilho que dá acesso ao miradouro onde, dez minutos depois, se vêem os animais ainda a dormir no bambú norte. Enrolam-se em bolas de pêlo e juntam-se aos três e quatro para afastar o frio. É engraçado vê-los acordar. Espreguiçam-se, esticam bem a cauda, abanam alguns ramos e logo começam à procura das melhores sementes para o pequeno-almoço. Estes bambús em que actualmente dormem só florescem a cada trinta-setenta anos, dá para acreditar? Repito o intervalo “trinta-setenta” - que me parece ridículo na sua imprecisão - tal como mo contaram. Ainda que seja trinta, nem queria acreditar que calhou eu estar aqui para o presenciar. Nenhum dos guardas do parque alguma vez o tinha visto! E facilita-nos bastante o trabalho, por agora, pois os macacos estão obcecados pelas sementes e recorrem aos bambús diariamente. Dentro de dois meses, ao que parece, acaba-se a mama.

Abaixo do bambú, a praia Apepú (e rima!). Uma inesperada língua de areia que nos dá acesso ao rio e a que há uns dias não resisti. Pisamos sedimentos cor-de-fogo, as rochas à volta bem negras e, de súbito, lembramos aquele livro de geologia que lá temos em casa, numa prateleira. Vulcânicas. São rochas vulcânicas. Disse-me a Sofia há uns tempos que as cataratas se formaram em três episódios de vulcanismo distintos. Uma, duas, três camadas. Interessante.

Da praia Apepú para trás, nas minhas costas, a floresta ergue-se e mal a reconheço sob a nova perspectiva. A encosta é íngreme e a parede de árvores parece engolir-nos como uma onda. Vemos os macacos e os dois bambús, ao entardecer. Digerem a ceia de sementes, preparando-se agora para dormir com o sol que baixa. Deixo pegadas na areia virgem com o gosto da criança que fui. Abandono as botas, as meias, o lenço, a mochila e o colete, empilho tudo junto a um tronco esquecido e dou saltos até à água. Está fria. Vou entrando. Fica fresca. Chega-me à cintura e noto-lhe a corrente. Fico. Deixo-me cair para trás e mergulho no verde desconhecido. Sabe a terra e a rocha. Estranho a falta de sal, apesar de estar habituada à barragem. Onde está o sal?, pergunto em voz alta. A Jen responde-me que não gosta de água salgada, que lhe faz confusão (confusão?... como é possível?). Mas gostas de praia?, volto a querer saber. Bem, já estive no oceano três vezes e gostei, mas a água parece que tem algo a mais! Três vezes… De repente, sinto-me estúpida. O mundo não está feito à imagem da Sara e existe uma montanha de gente que não vive junto à costa, não vai ver o mar em dias solarengos de Inverno nem planeia férias à volta das praias mais a propósito. Mais tarde, em casa, pergunto aos outros a que distância vivem do mar. Tirando o Dardo, que é de Roma, as respostas variam entre as quatro horas e o dia de viagem. Perto, concluem alguns.

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A comunidade Guarani em Misiones é muito grande. Dentro dos grupos aborígenes deste país, sem dúvida representativa. Discute-se, por vezes, se foi a força ou a fraqueza que os manteve, enquanto outros pereceram, e se os seus costumes têm espaço para ser mantidos ou não. Em Puerto Iguazu existem duas ou três comunidades distintas, na periferia da cidade, e muitos dos seus constituintes estão mais ou menos integrados na vida dos “brancos”. Fermino é um deles, homem novo que trabalha para o CIES sempre que é preciso montar plataformas no cimo das árvores, abrir trilhos para iniciar projectos, ou seguir macacos na falta de pessoal. Sabe sempre onde os bichos andam. É uma personagem engraçada, o Fermino. Fruto de uma mistura de sabedorias e culturas, agarrado às suas crenças mas curioso para o mundo. Acredita numa variedade de deuses, deusas, e respectivos filhos, não entende que a Terra possa ser redonda, mas quer saber o que é um electrão. Vê nas crianças elementos sagrados da Natureza e dá pouco valor ao dinheiro mas emprestou-nos um DVD com um documentário sobre o seu povo. Duvido que tenha televisão e leitor de DVD para o ver e pergunto-me se o guardará, como oferta do produtor, dentro de um cesto artesanal na sua casa de adobe. É, de facto, difícil entender os limites destas diferenças. As comunidades aborígenes tendem a fechar-se, talvez como único modo de conservação, e o que vemos de fora deixa muitas reticências no ar. As perspectivas de sucesso, no entanto, parecem-me poucas. Na Argentina, as populações originais e os seus assuntos estão sob a alçada do departamento do governo para a gestão dos parques naturais e (suposta) manutenção da biodiversidade. Animais, plantas e índios, portanto. Não são considerados pessoas como os demais, o que poderia fazer sentido dado que são distintos dos “ocidentais” e as suas vidas devem ser vistas e pensadas com respeito pela diferença. Mas, na verdade, estar, segundo quem governa, dentro do pacote “parque naturais” significa apenas que se vai passar por cima com menos alarido. As florestas são abatidas a uma velocidade alucinante, os animais empurrados para locais cada vez mais distantes e apertados e, a prazo, não há espaço para quem quer usufruir dos recursos sem pressa. “Fazer” é a palavra que marca as nossas vidas. Índios que não se ocupam, que não têm um trabalho que se traduz em dinheiro, não vão ter como subsistir. A selva desaparece e eles encontram-se isolados do mundo, mal ajustados ao espaço, carentes de um salto evolutivo que lhes ensine as novas regras. Ser absorvido ou morrer. É isso.

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Ontem choveu “pa caraças”. Olvidada do poncho (permitam-me a espanholice, é uma palavra de que gosto), a molha que apanhei não foi brincadeira. Brincadeira parece, no entanto, o jogo a que me entrego com os óculos nestes dias molhados. Preciso deles para seguir monos, isso é ponto assente. Então chove e enchem-se de pingos e já não sei se vejo melhor ou pior com eles. Mas mantenho-os. Dobro o pescoço para olhar para cima e não perder os animais que saltam de árvore em árvore e… as lentes embaciam! Tiro os óculos. Limpo-os à t-shirt, volto a colocar. Mais pingos de chuva. Um pouco adiante, mais nevoeiro. Ao fim de uma hora, a roupa ensopada já não permite limpezas. Desgraça. Não me divirto nem um bocadinho com este jogo, não há dia em que não perca…

O reverso de um dia assim é, simplesmente, voltar a casa. É em momentos assim que adoro ser humana. Chegada a pingar água do cabelo e da roupa, enfiei-me no duche. Mais quente, seca, com a roupa posta para lavar, dirigi-me à cozinha onde, para grande espanto e satisfação, a Gillian nos tinha deixado um termo com chocolate quente e um resto de esparguete do almoço. Divino! Decidimos então preparar uma sessão de cinema no imenso quarto de dois por três metros que nos coube. Um dos colchões no chão, encostado à minha cama e o computador em cima de uma cadeira. Lugar para cinco e uma garrafa de tinto. “O Fabuloso Destino de Amélie”. A chuva, lá fora, já escuro, não fazia cerimónia. Parecia que o céu desabava, que tudo tinha que parar debaixo da cortina espessa de água que ruidosamente nos dava conta de si. Como dizer-lhe que não?