14 de junho de 2009

à falta de escrita...

...aqui ficam uns "bídeos" acabadinhos de sair do forno!!





1 de maio de 2009

as minhas desculpas...

gente, nao consigo actualizar o blog ultimamente! Ando em viagem, de cá para lá, com muitas notinhas no caderno e muito boas intencoes, mas o acesso à net é para mandar meia duzia de mails e mais nada.

Fica a promessa de me dedicar à comunicacao assim que conseguir. Nao sei quando vai ser isso... Na pior das hipoteses dentro de um mês e meio deixo aqui tudo de uma vez! I'm sorry, mais uma vez.

Hoje estou por cruzar a fronteira para a Bolivia. A ideia é ir subindo e vivendo até chegar a Machu Pichu. A ver!

6 de abril de 2009

vigésimo sexto

Nao querendo saltar capítulos da história, vou entao terminar de contar Corrientes e os uivadores.

Da EBCo viajámos para a Isla del Cerrito, que nao é uma ilha mas sim uma península e fica já localizada do lado da província de El Chaco. Aí chegados, foi tratamento de luxo para quem faz trabalho de campo: hospedados com um casal que alugava quartos, situaçao muito comum por aqui, nao havia que arrumar nem que cozinhar. Ainda por cima a senhora Gallo vendia comida para fora! Assim, a cada madrugada serviam-nos o pequeno-almoço e entregavam-nos, prontas, as sanduíches para o campo. À noite, pelas nove, entrava o jantar, sempre gordo e bem-vindo.

A colaboraçao do senhor Gallo passava por transportar-nos, na sua caixa aberta, até ao rio todas as manhas – e de volta todas as tardes. Às seis e um quarto, ainda sem sol, lá se ouvia o rodar da igniçao e se apressava o calçar das botas e o preparar da mochila. Os dias já mais frescos pediam algum abrigo a quem se sentava na parte de trás da carrinha. De caminho apanhávamos sempre outro grupo de moneros que dormia noutro lugar mas trabalhava também na isla brasilera – essa sim, um verdadeira ilha, de cerca de trinta hectares.

Atingido o rio, faziamos entao deslizar a canoa pela rampa. A subida a bordo vinha sempre revestida de alguma ansiedade, principalmente por parte dos dois únicos machos presentes. Dificuldades de equilibrio, provocaçoes vindas de terra e material arruinado caso a embarcaçao decidisse virar-se. Nunca aconteceu. Remadores à frente e atrás, uma ou duas pessoas no centro (dependendo do peso dos presentes), mochilas soltas e botas semi descalçadas, just in case. A outra margem estava logo ali à frente, eram três minutos de percurso. Depois havia que voltar para buscar os restantes, cinco viagens no total, entre idas e vindas. Era quase um jogo. Quem vai agora? Nao, tu nao podes ir com X, tens que ir com Y. E enquanto isto durava, o sol começava a aparecer no horizonte, enfiando com precisao no continuar da linha do rio e anunciando sem vergonha o seu espectáculo de luz. Remando sentada ao nível da água castanha do rio, como que mergulhada nela sem me molhar, sentindo passar a corrente enquanto obedecia às ordens da Romi “derecha, izquierda, ahora clava a la derecha…”, vendo a margem lodosa do outro lado aproximar-se, o canavial verde fresco que nos recebia na subida e as cores do céu que, sem pressa, se iam revelando e dando lugar umas às outras, substituindo sem ciúmes os reflexos violeta pelos rosa e estes depois pelos laranja, numa entrega tal de luz que só as nuvens fôfas deste lugar sabem receber, absorvendo eu todos esses detalhes com olhos ainda sonolentos, só restava encolher os ombros e render-me à evidência: sou um fragmento ínfimo de uma riqueza incompreensivel; e agradeço todos os dias o facto de sentir espanto.

O trabalho na ilha era igual ao que antes tínhamos feito na EBCo e, para além de ter andado a ibuprofeno alguns dias para aguentar a contractura muscular no pescoço, tudo correu sem novidades de maior. A Andrea deixava-se dormir e ressonar durante a sesta dos macacos, o Marcelo nao se calava e nao dava um minuto de sossego, os bichos mantinham a habilidade de desaparecer silenciosamente muitas vezes, dado que se mexiam tao pouco e tao devagar que acabávamos a olhar para o lado e a pensar na morte da bezerra (é que movimentos destes a quinze metros de altura, no meio da folhagem das copas, tornam a coisa realmente complicada).

A povoaçao, Isla del Cerrito, é uma das várias que, nos anos cinquenta, servia de cativeiro a leprosos. Passeando à noite, depois de jantar, em busca de cartoes para telefonar ou guloseimas para aconchegar a alma, encontravam-se esses edificios coloniais erigidos pelos ingleses, que antes haviam sido dormitórios, clínicas, áreas de convívio e também aquilo que agora, sem dúvida com boa intençao, foi convertido em biblioteca: o crematório. De fora, através das janelas, observam-se ainda os espaços dedicados aos caixoes, em género de prateleiras na parede. Por muitos livros que o preencham, a atmosfera neste lugar sente-se pesada.

Em toda a zona antiga vêem-se também pequenos carris que cortam a continuidade das ruas arenosas. Percebe-se que serviriam um comboiozinho do estilo daquele que une a Costa da Caparica à Fonte da Telha e suponho que a sua utilidade estivesse relacionada com a época do leprosário. Agora nao está activo.

Mas, apesar do peso destas memórias, nao se imagine que o lugar é lúgubre. Como é costume, depois da sesta, o comércio reabre entre as cinco e as dez. Como é costume, nestas terriolas, o reggaeton é rei e a batida faz-se sentir em cada esquina. Deambulam grupos de adolescentes, jovens maes com jovens crias, rapazes com os cabelos escuros puxados a gel para um dos lados, por cima dos olhos. Sentam-se à porta das casas comadres tomando tereré. Tudo está vivo, soa, passeia de bicicleta! É uma sensaçao agradável que nos chega.

23 de março de 2009

vigésimo quinto

Logo que o despertador recomeça a tocar às cinco e meia da manhẵ, torna-se difícil controlar a exclamaçẵo “ó meu deus, porquê?”, ainda que nẵo se acredite, à partida, numa entidade divina responsável pela existência própria. Apetece até ir na onda, montar-se a cavalo na fé, só para poder questionar-se assim. Ó amigo, porque me destinas tal sorte?? E entẵo faz-se luz e ocorre-nos onde está a verdadeira responsabilidade. Com alguma vergonha, calamos o bico – que nunca chegou a ser aberto porque o cérebro a essas horas é uma pasta mal definida que se limita a fazer funcionar os mecanismos mais básicos. A sobrevivência da casa-de-banho e de ruminar uma torrada empurrada esófago abaixo com chá. Lá fora a noite, ainda escura, e todos os cri-cri e croac-croac que a acompanham, nẵo se pode dizer que chamem por nós...

Trabalho de campo nẵo é passeio. É um privilégio sim, mas a verdade é que muitas vezes se paga com o corpo. A constância de dias e dias seguidos a trabalhar doze horas sem parar, ainda que com animais que se mexem pouco, pode dar-nos cabo do miolo. Compensa-se com esse acesso a lugares incríveis e ao vislumbre de vidas bem diferentes das nossas – falo dos monitos.

Na EBCo, em Corrientes, de onde agora escrevo, macacos-uivadores é coisa que nẵo falta. A cada dia estudamos um grupo diferente e a técnica passa por seguir um indivíduo ao longo das horas solares para registar o que ele faz. Tudo o que ele faz. Nẵo podemos perdê-lo de vista, a nẵo ser que precisemos de parar para comer ou “ir à casa-de-banho”. A Romina estuda relaçỡes de conflicto entre as progenitoras e as crias, pelo que nos concentramos a juntar dados comportamentais destes indivíduos. Alguém segue a cria, alguém segue a mẵe, e outras duas pessoas fazem o mesmo com outros dois animais. É interessante, a floresta é muito diferente da mata atlântica de Iguazu e o facto de haver muito pastoreio de vacas, acrescenta à curiosidade da situaçẵo. As zonas em que encontramos macacos sẵo fragmentos, ilhas verdes, no meio da pastagem. Sabe-se que os bichos podem atravessar de umas para as outras caminhando pelo solo, mas dizem é acontecimento raro.

Os homens que guardam as vacas e as juntam ao fim do dia, para as chamar e para se comunicarem entre si, soltam gritinhos agudos - uuuooo - que, à primeira vez ouvidos, parecem de brincadeira. Os investigadores adoptaram o grito, nẵo sei se para se por agregaçao cultural, se porque os acharam divertidos. E eu sinto-me um pouco ridícula trocando os sonoros op! de monero do cies pelos mais tontos uooo de monero da ebco.

O que acontece aqui e que gosto de ver é que há mais gente, com projectos de distintos temas, a trabalhar com os uivadores, do que encontrava em Iguazu. E há quem viva realmente na estaçẵo, dando um toque familiar ao lugar.

Como já os olhos vẵo fechando, acho que deixo mais dizeres para depois.

Aqui ficam umas poucas fotos. E o nome do cẵo negro é... Negro! Como nẵo haviamos de ficar amigos se lhe encontrei logo a graça??





11 de março de 2009

vigesimo quarto

Bem curta esta ausencia, a minha nova boss tem computador e internet. O problema eh que o teclado nao tem acentos (ou te-los-a em lugares insondaveis). Tomei a liberdade de esticar a corda ao nosso belo portugues, por isso peço desculpa mas creio que facilita a leitura. Quando tiver oportunidade tratarei de o corrigir.

Saimos da estrada principal logo a seguir à placa que diz San Cayetano e percorremos de carro as ruas de terra batida, quase de areia, a que ja me vou habituando.

Depois de uma extensa linha recta, na qual nos vamos cruzando com casas espaçadas a pequenos terrenos mais ou menos cultivados, chegamos ao portao da estaçao biologica. “Cuidado com o cao!”, “Atençao: cao perigoso!”, le-se em duas ou tres placas. Sabemos que nao esta ninguem, o que nos deixa um pouco em sobressalto. Apenas ate que se aproxima o cao. Um rotweiller de cauda a abanar e lingua de fora. Feliz da vida por ver alguem, recebe-nos com saltinhos amigaveis e turras nas pernas para ganhar direito a mimos. Aliviados, entramos no espaço comum a cinco pequenos edificios que se dispoem, mais coisa menos coisa, circularmente. Nao se lhe pode chamar jardim, nem sequer patio. Uma area com arvores que da sombra as casas? Serve.

Quando se vem do caotico CIES, chegar aqui deixa qualquer um impressionado. O espaço nao eh grande mas cada divisao eh mais ampla, tem muito menos tralha espalhada e, principalmente, eh bem mais limpo. Da gosto escolher uma cama e desarmar a mochila, da gosto entrar na minuscula cozinha e preparar um cha, pelo simples facto de que esta arrumada e podia ser a cozinha de uma casa minha – ou de qualquer pessoa com poucas pretensoes culinarias.

Lanchamos enquanto o Mario, o investigador que me deu boleia, me mostra algumas fotografias que as camaras-trampa (nao me ocorre o nome em portugues) tiraram aos mamiferos dos esteros e me explica os resultados que ate agora conseguiram.

Saio depois para o entardecer, na esperanca de ouvir cantar os carayas. Levo o livro, sento-me num gigante tronco caido, de frente para o sol que se vai. Nuvens baixas e fofas pairam no horizonte, o astro rapidamente se esconde para começar depois a estender, um a um, os seus raios atraves delas. Forma uma tela de luz derramada, como se decantada, sobre o matagal e as ocasionais palmeiras. Olho. Espero. Vejo. Lentamente o azul das nuvens e o branco da luz vao-se transfigurando num quadro de cores vivas. Os rosas, os laranjas outra vez! Olho. De vez em quando decido ler, mas logo me foge a mirada de novo para o ceu. Eh incrivel.

O cao negro, cujo nome ainda nao sei, aproxima-se e desata a escarafunchar entre o tronco em que estou sentada e o solo; nao entendo o que busca, algo da maior importancia sera. Depois fica por ali porque, ja percebi, gosta de mim. E eh entao, quando a luz ja esmorece e comeco a pensar que nao da mais para esforcar os olhos na letra minima do livro de bolso, que os começo a ouvir. Um som aspero, rouco, que vai em crescendo e da a sensacao que vem de la uma tempestade. Eh um “uuuhhhhh” que soa a vento forte, a furacoes, a arvores balaceando em turbilhao. So que acontece que nada disso acontece, a paisagem mantem-se mansa e o som ondula sem consequencias.

Devagar, aproximo-me da zona de onde vem o ruido. O cao negro segue-me. Cem metros adiante sou limitada por uma cerca e um arame e percebo que os animais estao perto. Agacho-me nesse suave fim de tarde e fico a ouvir os uivadores uivar.

(quando chegamos pela primeira vez a um local, ou quando acabamos de conhecer uma pessoa, tudo o que eh bom parece fantastico e tudo o que eh mau parece insuportavel; suponho que seja um mecanismo eficiente para tomar decisoes rapidas, se estas se mostrarem necessarias)

Ao voltar a subir a ladeira em direccao ah casa noto, ah minha esquerda, que a lua ja subiu. Ergue-se um pouco acima do horizonte, cheia, redondissima e algo amarelada. Afasto-me das arvores para a contemplar. Olho por cima do ombro na direccao de onde vim e encontro ainda o ceu colorido. Por momentos nao sei o que fazer. Como eh que se escolhe entre o sol e a lua? Estou parada a meio caminho, indecisa. A lua atrai-me, estah linda, mas eu costumo ver o por-do-sol ate ao fim (pode qualquer outra pessoa entender que estes sao dilemas infimos nas preocupaçoes diarias de cada um e, enfim, talvez a longo prazo sejam, mas no momento em questao, que eh o que sempre e mais importa, eu estava sem escolha nem decisao – como o poeta). Olho para tras, olho para a frente, olho para tras de novo, noto que se estah por acabar. O cao negro fixa-me pacientemente. Volto a olhar para a frente, a lua ilumina agora a base de umas nuvens finas que, por isso, ganham uma graduaçao de cinzento, do mais claro ate ao escuro do ceu. Sei que nalgum momento ela ira subir, passar as nuvens, tornar-se branca e forte e eu nao vou ter mais vontade de a contemplar. Mas tambem sei que o sol desaparecera em breve. Que ha ja uma hora que o vejo. E, na verdade, quando chego ao fim de todo este brilhante raciocinio de logica e pesagem argumentativa, deste debate de sara com sara, dou-me conta de que foi inutil, pois que o faço ja mirando a lua e a decisao tomou-se sozinha. Talvez por ter vislumbrado um sapo gigante debaixo dela e me ter querido aproximar. Creio que tera uma vez e meia o tamanho do meu punho fechado, tento observar-lhe as manchas do dorso, ponho um pe atras do outro devagar, silenciosamente, quase sem me mexer. Mas ele nao se deixa enganar, de um salto aumenta a distancia entre nos e depois vai-se mais tranquilo, em passinhos curtos decididos, resmungando, com certeza, com os seus botoes, que a vida aqui eh bem menos incomoda quando as pessoas decidem nao aparecer.

Entretanto, um puzzle de nuvens coloca-se estrategicamente entre mim e a lua, hipnotizando-me por uns momentos. Ilhas escuras num mar de luz branca. A bicharada menor, como sempre, canta. O ar esta fresco e a ausencia da humidade pesada da selva faz-me respirar melhor. Gosto deste lugar desafogado, penso de repente. Entao os carayas voltam a gritar, ja a noite cerrou, mas desta vez mesmo ali ao lado do caminho onde estou, por onde vinha para casa. Subiram, tal como eu. O Mario aparece para os ouvir, caminha contente, com aquela expressao de naturalista que conheço de outras caras. Eu quero ver a lua ainda um bocadinho mais. Debaixo dela ervas altas, meio secas pelo Verao, picam-me as pernas. Mosquitos tambem. Centenas de pirilampos juntam-se ah festa porque a natureza eh o espectaculo dos sentidos; como, e em que realidade, poderiam faltar pontinhos verdes de luz cintilante?

E, no fundo de tudo, la naquela parte de tras do cerebro onde so chegam mesmo as coisas importantes, alguem levanta um cartaz e me avisa, sorrindo: cheira a hortela! Adoro o cheiro a hortela - que aqui se diz menta.

10 de março de 2009

vigésimo terceiro a toque de caixa

Estou por anunciá-lo há vários dias mas a preguiça e a vida metem-se pelo meio, os planos armam-se e desarmam-se, os mates preparam-se, as conversas estendem-se e os anúncios, ao que parece, são os primeiros a ficar pelo caminho.

Amanhã é novo dia de partida, desta vez para Corrientes, a província do lado, onde vou poder estudar uma outra espécie de primatas - os pachorrentos carayas de que falei no último post. Tudo se decidiu com celeridade: a Clara conhecia uma rapariga que precisava de assistentes já para este mês, enviei o que tinha que enviar, ela falou com quem tinha que falar e aí vou eu para a EBCo, Estação Biológica de Corrientes, local que muito se tem dedicado à primatologia. Sinto-me uma exploradora de centros de investigação... Estou muito curiosa para ver outro sítio "monero", outra gente "monera" e, principalmente, outro tipo de "monos"!

A aventura sul-americana da sara, dizem alguns. Para mim tem sido, muito mais que aventura, aprendizagem. De fora para dentro, de dentro para fora e sempre, isso sempre, com olhos de ver.

Nos próximos tempos não sei se vou ter acesso a internet para deixar aqui novidades. Parece que, pelo menos de início, talvez sim. Depois mudamo-nos para o segundo local de estudo, uma ilha no rio Paraná, onde as condições serão mais básicas - que as almas familiares não se atirem já ao ar, estarei bem e bem contente.

Hoje despediram-se de mim com pizza e cerveja. A noite esteve fresca, creio que se anuncia o Outono. Pareceu-me a noite ideal para um encerramento, o frio no ar recordou-me, de repente, a primeira noite que passei aqui. A reunião em casa do Joni, as caras então novas que agora vejo habituais, a curiosidade simpática que traziam, o fresco inusitado do tempo, a necessidade de uma camisola, a fogueira, a música e as estrelas. Não há nada de que mais goste que um bom fechar de círculo.

Sinto alguma melancolia, mas vou tranquila. Agradecida por tudo o que me foi dado a conhecer.

4 de março de 2009

vigésimo segundo

Muito tempo sem dar notícias, muita actividade, não me levem a mal.

Tinham passado alguns dias depois de a bomba rebentar e viajaríamos decididas aos Esteros del Iberá. Meia colapsada com as mudanças drásticas no que estava por vir, senti-me em transe até à última. Ocorreu-me preparar a mochila e tudo o que seria necessário para acampar na noite de véspera, lás para as onze tardias. Havia também que sacar tudo o que era nosso do quarto que era nosso porque, em quatro ou cinco dias, deixaria de o ser. Assistentes novos viriam para nos substituir. Teríamos que deixar tudo no laboratório, on hold até voltarmos, e entrar nesse quarto que havia sido nosso e que, por uma noite mais, ainda o seria, sentiu-se como um bofetão. Uma ausência de roupa pelo chão, de livros empilhados, paredes agora nuas que se queixavam um pouco do frio, prateleiras vazias que nos miravam desconfiadas, como se as tivéssemos traído e nós ali, meio sem querer ver, meio em silêncio, meio a querer falar sem voz. A Jen ofereceu um pacote de yerba e outro dos meus alfajores preferidos, para que levássemos connosco. Um gesto significativo numa noite chocha. Creio que chuviscava. Ou talvez não.

Um dia e meio depois de termos saído – porque a Argentina é um país bem grande e não é que fôssemos de carro – chegámos a Pellegrini. Para o conseguir, houve que percorrer oitenta quilómetros de terra batida, um acesso que não se pode considerar fácil. Rotas de cansaço, caímos no meio da siesta, quando a povoação parecia deserta e o calor me resulta aqui difícil de descrever. Debaixo dos gritos das cigarras, restou-nos procurar um copo de água, uma sombra e esperar.

Os esteros são zonas alagadas, cujas lagoas se estendem por centenas e centenas de metros, albergando uma fauna imensa de aves, peixes, répteis e mesmo mamíferos. Não é complicado ver carpinchos, os parentes gigantes dos porcos-da-índia, que deambulam pelo parque com o focinho colado ao chão a comer erva ou se banham nos charcos e lagoas, deixando apenas a cabeça de fora. Vêem-se também aves de todo o tipo, jacarés e (para nós o ex-libris) bem pachorrentos macacos-uivadores!

Entre o pueblo e as instalações da reserva, onde foram criados os trilhos para as pessoas passearem, existe uma lagoa. É preciso atravessá-la através um caminho de estrada laranja que leva a uma pontezita metálica e, de novo, do outro lado, à continuação do caminho laranja. Esta travessia acabava por ser feita por nós mais do que uma vez ao dia e encontrávamos sempre qualquer coisa interessante para ver. De manhã cedo, quando o sol se levantava, as aves eram aos milhares. Ao entardecer, as cores do céu – que além de ali parecer ser infinito, com as nuvens baixas a pairar, ainda se espelhava na água parada – obrigavam-nos a sentar nos muretes laterais do caminho, em choque, indignadas com tanta beleza. Amarelos, laranjas, violetas, fúcsias, azuis fortes de nuvens tormentosas e também brancos das de chantilly… Tudo se juntava ali em jeito de celebração ao dia que havia findado. Foram mesmo os céus mais impressionantes que já vi.

A reserva é atravessada por uma estrada. De um lado a extensão da lagoa, paisagem bem horizontal salpicada por pindôs; do outro, uma mancha de floresta diferente daquela a que já me habituei, uma floresta baixa e onde por todo o lado se encontram epífitas penduradas nas árvores. Ali as plantas parecem respeitar-se mais do que em Iguazu e deixam espaços entre si, permitindo ver um pouco mais de chão e facilitando os movimentos. As copas são largas e unidas umas às outras e oferecem uma sombra bem cerrada, criando uma sensação de tranquilidade, de sossego absoluto, como se se tratasse de um gigante jardim muito bem cuidado. Foi nesse estranho silêncio que sentimos, quase por magia, movimentos em cima. Lentos. Algo grande esticava-se entre dois ramos, num equilíbrio complicado. Dobrámos o pescoço para o ver com atenção e lá estava um caraya. São os primatas mais preguiçosos que eu já vi. Sentam-se e descansam durante horas a fio e praticamente não fazem movimentos rápidos. Alimentam-se apenas de folhas, o que é provavelmente o motivo para se comportarem deste modo. É que o verdinho não dá muita energia. Chegámos a passar duas horas sentadas no mesmo lugar a olhar para eles a comer. Isto num Cebus apella seria absolutamente espantoso!

Montámos a tenda no terreno de uma família amável. O senhor Mario, a mãe, Dueña Tomasa, mais as irmãs e todas as demais caras que se sentavam cá fora ao final da tarde e nos miravam com satisfação. Pellegrini é um lugar estranho que se supõe direccionado para a conservação da reserva e para o turismo, mas onde encontrámos lodges às moscas misturados com gente local muito humilde, que faz a sua vida bem devagarinho e olha como quem aceita esse facto. Não se encontra um supermercado, uma caixa multibanco, sequer uma praça central. Acho que estas aldeias não têm o hábito da centralidade. Todos os caminhos são de terra batida e vão dar a outros caminhos iguais, a outros terrenos por cultivar, a outras casa mal terminadas e remendadas a zinco. Às vezes ocorre passar um homem a cavalo.

Já não sei quantos dias ficámos nos esteros mas foi uma viagem que valeu bem a pena do caminho. Acho que as fotos o demonstram…



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