14 de setembro de 2008

quinto

Ontem deitei-me na cama de rede depois de voltar do campo. O dia tinha sido um bocado chato, os animais moveram-se sempre muito devagar e sempre nos barrancos de onde não os conseguimos ver – só ouvir. Paradas à espera de um som, caindo por vezes no erro de nos adiantarmos aos bichos, custou um bocado a passar. Mas a ideia é saber sempre onde vão passar a noite para que, no dia seguinte, os possamos encontrar pela manhã. Assim, mesmo sem realmente os observar, ficar pelo menos até às duas da tarde é sempre necessário. Dessa altura até às seis podem mover-se um bocado mas já dá para prever a direcção em que o farão e os dormitórios não são assim tantos.

Tardiamente almoçada e banhada, deitei-me na cama de rede, inspirei o ar carregado e lembrei-me do princípio de um livro do Sepúlveda. O meu preferido, O Velho que Lia Romances de Amor. Fraca de memória para repetições, não o posso transcrever. Mas recordo que nos mostrava um céu como uma barriga inchada que cobria cabeças num pueblo à beira-rio, num local florestado como este. Lembrei-me dessa passagem, desse inicio de livro, porque acima de mim o céu inchava a sua barriga cinzento-amarelada e ameaçava borrasca. Tal e qual. A brisa soprava com alguma força, estava quente e pesada, já cheirando a chuva. Fazia levantar as folhas do chão e, a mim, espreguiçar ainda com mais gosto. O cheiro a doce, a plantas, a mundo novo. Se esse céu redondo pudesse escrever, estou certa que teria desenhado a laranja terroso e em letra incerta de criança a palavra “trovoada”. E como é boa uma trovoada em chinelos e mangas curtas, não? Deixei-me ficar felinamente estirada na rede fingindo que lia um livro. Chegaram então, quase em simultâneo, a Verónica e a Mica. A primeira trabalha também aqui no parque com os macacos, mas não no mesmo grupo que nós. É assistente da Clara, que estuda conflitos entre grupos de capuchinhos. A segunda faz parte do meu grupo (é a única não-americana, para além de mim). Ambas argentinas de Buenos Aires. Sentaram-se então por ali, uma a ler, outra a contar-me o resultado da sua ida à enfermaria tirar umas bichezas do pé – que trouxera de El Chaco, uma zona selvagem supostamente muito bonita a Este e muitos quilómetros daqui. A Mica preparou um Mate, que foi passando como manda a tradição, e pediu-me que lhe ensinasse Português. Não me tinha passado pela cabeça que pudesse interessar a alguém aqui aprender o nosso luso idioma! Mas, ao que parece, o Brasil é um país grande e interessante… Resultado: além de andar bem baralhada com o castelhano e o inglês diários – é frequente acordar e, parca em consciência, ter um autêntico bloqueio quanto à língua que devo usar para perguntar as horas -, agora encarno a brasileira em mim e dedico uma hora diária a ensinar palavras à Mica nessa sonoridade que não é a minha. Às vezes, com o cansaço físico dos dias bem mexidos, acabamos a ter enormes ataques de riso porque não conseguimos dar uma para a caixa. A Jen, das duas assistentes americanas a mais velha, tem um espanhol ainda básico. Tal como o inglês dos equatorianos que para aqui andam a fazer um trabalho de ecoturismo. Todas as noites, à mesa do jantar, americanas e equatorianos tentam ensinar os respectivos idiomas uns aos outros. Asseguro: hilariante! Como os argentinos têm uma maneira muito particular de falar, aspirando os esses e substituindo os sons de “ll” e “y” por “chhh”, a expressão castelhana de um americano que aqui aprende a língua resulta em algo que parece uma anedota. Deixa-se ficar a entoação americana, os acentuados altos e baixos e as exclamações frase sim, frase sim, mas numa língua absurdamente caricata. A mistura dos “chhh” com o facto de não conseguirem fazer soar os erres fá-los parecer como tendo uma língua própria, à semelhança do que fazem algumas crianças. Às vezes dá-me ideia que ouço ucraniano, moldavo ou swahili à mesa do jantar!


Temos muito bom ambiente no CIES. Além do grupo da Clara, composto por quatro raparigas (duas dos states e duas daqui), do nosso, e dos tais dois equatorianos, há o Riccardo, italiano que acabou de chegar para tentar desenvolver um projecto de promoção do parque e o Mosquito, argentino que estuda os propriamente ditos mosquitos e as doenças que transmitem. Além disso, apareceram também há uns dias duas raparigas argentinas que andam a estudar para ser guardaparques. À hora do jantar é uma ordenada confusão na cozinha comum. Mas, ao fim de duas semanas, já estamos à vontade uns com os outros. Mesmo aqueles que, por questões idiomáticas, não se entendem. Os meus temores não se cumpriram e os “oh my God” que tenho que ouvir não incomodam, afinal, tanto como isso.

Adoro, na Argentina, que toda a gente se cruze e se fale com um sorriso na cara. Como se problemas e tristezas realmente não pagassem dívidas. E adoro o mate, a infusão de uma erva que ocorria originalmente apenas nesta região do país. Como bebida é um pouco amarga, ainda não me habituei a ela por completo. Mas o ritual é que me encanta. Serve-se num pequeno copo de madeira, forrado ou não a couro, em que as ervas são deitadas e mexidas para acamar o pó, deixando as folhas maiores no cimo. Não terá mais volume do que o correspondente a dois goles grandes. A água aquece-se até ao momento imediato antes da fervura e é colocada num termo. Juntam-se então as pessoas para el mate e há um responsável pelo momento, alguém que convida. Ele (ou ela) vai, assim, deitando água no mate, que é também o nome do copo. Enche a primeira vez e bebe-o, através da bombilla – um género de palhinha de metal com um filtro no fundo para não deixar subir as ervas –, para testar se está bom. A partir daí serve um copo cheio a cada pessoa, que o deve beber até ao fim e devolver sem agradecer. Quem prepara o mate continua a encher e a passar o copo a todos os que queiram. No fim, recomeça. E quem ache que já tem o suficiente deve devolver o copo dizendo gracias. Esse será o sinal de que não quer continuar na roda do mate. Isto faz-me sentir parte de uma tribo pré-histórica e imagino sempre que me junto ao meu clã, ao fim do dia, a debater o movimento das manadas, a necessidade de alguns instrumentos ou o amadurecimento dos frutos. Pensando bem, sentamo-nos à mesa a falar do movimento dos macacos, da orientação nos trilhos, do clima e da comida que é preciso ir comprar à vila. Qualquer semelhança com a dita pré-cultura não será pura coincidência. E o mate dá espaço para que se fale. Me encanta. Surpreendeu-me não apenas pela novidade em si, mas porque toda a gente o faz. Literalmente toda a gente. Em cada casa argentina em que entro, há um mate na cozinha, cheio de erva já usada (não sei porquê, mas não o guardam lavado). Em cada esquina vejo grupos de amigos a tomar mate. Até na camioneta do parque, que nos leva a Puerto Iguazu, vejo o condutor a tomar mate pela tarde! Uma mão no volante, outra segurando o mate. Ao cruzar-me com as argentinas que regressam do campo, vejo-as com um mate já seco. É incrível como algo que implique andar com um termo atrás esteja tão enraizado no dia-a-dia das pessoas.

Adoro também o dulce de leche, que é como quem diz leite condensado em formato cremoso para comer à colher ou barrar onde se queira. Banana com dulce de leche, hmmm... Bolachas com dulce de leche, hmmm… dulce de leche com dulce de leche, hmmm…

Uma última ideia: quem foi a alminha que se lembrou que um poncho seria uma boa solução para andar debaixo de uma tromba de água na floresta enlameada? Alguma que nunca teve que o fazer, por certo. Agora não é o frio mas a chuva que me frita as ideias.

12 comentários:

Unknown disse...

Sarita
estou a provar do pecado original cada vez que leio o teu blog, porque o que descreves, o sublime do que sentes e do que vês não parece feito para humanos. Deslumbramento original... que se sente e se prova e se cheira nas palavras todas que tens.

Nao sei se imaginas a emoçao que é ler os teus posts de poeta acerca da tua vivencia de uma selva distante e humida com AQUELAS CATARATAS lindas.

Meus Deus isso existe. Sublime, sublime, e um bálsamo para esta vida poucochinha das cidades.

Estás a ser uma perigosa inspiração.

Peço-te que não pares de nos deixar viajar contigo e que vás postando.

Mtos beijinhos Lisboetas
JB

MB disse...

Alo Sara.
Acabei de vir da casa dos teus tios, onde encontrei mãe e Henrique. Vinhamos "cabisbaixos" pelo flop do concerto da Madonna, demasiado electrónico que conseguiu estragar musicas antigas como o fantástico Like a Prayer...
De resto, vejo que continuas em harmonia com a bicharada e com a natureza!
Já agora: que tal o Riccardo italiano?lol
Outra coisa: quando estive no Brasil apanhei um bicho no pé chamado "Tunga Penetrans". Será o mesmo que a tua colega trouxe do el chaco?:)
beijinhos grandes

Unknown disse...

Esta madrugada deu-me a insonia e como já temos o portatil fui espreitar para ver se tinhas actualizado o blog. Como sempre a descritiva é impressionante!!!:), faz-nos sentir como se estivessemos lá! Já estou como o João, não só inspiração, mas "inveja".
É engraçado que a descrição que fazes da cerimónia do mate é parecida com a dos ingleses em relação ao chá das "5 o'clock" e o vinho do Porto no final da refeição.

Cuidado com o dulce de leche, que engorda bastante. Depois à que fazer bastantes caminhadas!!!

Beijos grandes
Mia

Alex disse...

Sapa,
És a maior.

Beijinhos Tugas

ttk disse...

Já descobri o teu (nosso) futuro,e como vais(vamos) ficar rica(ricos).
Vamos fazer uma agência de viagens para cegos e tu és a guia turistica.
É que pelo que tenho constatado os "ceguinhos" todos (eu incluido) que visitam o teu blog,já conseguem visualisar as tuas paragens!!!!
Por isso, deixa lá os macacos e vamos aos negócios...

Bjinhos
Manel

Anónimo disse...

Querida Sara,

Realmente não pares, não mudes e acima de tudo, não te domestiques. Para que nós infelizes criaturas hurbano-depressivas possamos ver
através das tuas palavras, que o que hollywood e a Signoury Weaver (não sei de todo se é assim k se escreve) nos pretenderam mostrar, não só é real, como "vivido" por alguém que nos é tão próximo.

Um beijinho enorme (bem maior que a floresta que tens pela frente)

Sara

calvinn disse...

aposto que as americanas são aquelas duas que estão la atrás, com sardas na cara:)Como é que consigo ver que têm sardas? No meu imaginário elas têm sardas. Imagino-as tiradas da série Beverly Hills.:)
Sabes que mais estar ai é bom, há o verde e tal, mas em linha recta o mar , a praia fica a 135km e alguns metros ( viva o Google Earth) e nós por cá , esta bem que não temos essa mancha verde, mas bolas, temos a costa da Caparica:)
Agora falando de coisas mais sérias, é óptimo ler um texto e ser transportado para o outro lado do mundo. Obrigado pelas viagens.
beijinhos
atentamente David

Unknown disse...

Bem, desde já lamento a minha menor assiduidade nas visitas e comentários no blog. Estou com tanto trabalho que nem os capuchinhos podem ficar indiferentes. Acredita tu que estou com um pânico diferente, vou dar uma conferência para 450 pessoas e por estranho que pareça estou a um passo de fugir prá Argentina, ahahaha.

Se a ti te gusta, a mi me encanta.
Besos guapa.

sara disse...

joão,
Eu já não sei o que "contestar"! Posts de poeta? wowww..... Nao é para tanto! Pero me encanta que sigan leyendo. :)

mo,
Pois, ouvi falar da banhada chamada madonna. Que mal! O Riccardo é o dos óculos na foto. Porreiro, bem disposto, mas não propriamente charmoso... Ou pelo menos o charmoso que se esperaria de um italiano, não?...
lol, nao sei o nome da bicheza que vivia no dedo do pé da mica.

mia,
eu diria que andar todos os dias das 6 da manhã às 13 da tarde me permite umas colheradas de dulce de leche!! Não?... ;)

alex,
mtos beijos, espero que continues seguras dos teus gritos do ipiranga!

ttk,
o negócio já o descobri e - lamento voltar a bater na mesma tecla - chama-se mesmo dulce de leche! Já avisei o pessoal aqui que o ia começar a exportar para Portugal. Não tenho dúvidas que faria sucesso. Bora?

sara,
sim, é possível vivê-lo! Obrigada pelo comment e muitos beijinhos (a todos ustedes, claro)

calvinn,
que perspicácia! realmente são as americanas e ambas têm muitas sardas! Bem sei que o mar faz falta, mas por enquanto o verde basta-me... :) bjinhos

txico malvado,
suerte!!
vai correr bem, mandas umas das tuas piadas, rasgas um sorriso e já está!
bjs

C.M. disse...

Ahora yo!!!
Atrasadita a comentar este post mas entre os apitos e a urbanidade maluca...enfim a mesma lamúria de sempre.
Dulce de leche, hummm, acho que se quiseres uma sócia, está adjudicado.
Mate em ritual com muita conversa pelo caminho...hummm, não sei se é bom negócio mas aprende lá a fazer, e fica desde já agendado um jantarito:-)
A continuares a qualidade e o entusiasmo das descrições tarda nada tens aí um montito de tugas à porta!

Beijinhos

Unknown disse...

Se quiserem mais uma sócia para o dulce de leche aqui estou eu sempre às ordens! :) hummmm...tinha é que fazer longas caminhadas a seguir né? lol
Mas já sabes, se quiseres mandar um bocadinho aqui para a malta tás à vontade! A morada já a tens pelo menos...:)
Tb já vim um pouco atrasada para comentar este post mas não queria deixar de dizer que continuo a adorar as tuas descrições...é como se estivesse a vivê-las eu mesma. Continua assim e a trazer-nos um cherinho do outro lado do mundo.

Beijinho grande deste Portugal tão pequenino :)

Pima

Ines S disse...

crepes, crepes con dulce de leche! e gelado de nata con dulce de leche! que delicia!!
lembro me da mae da Fran a passar a tarde de roda do fogao a mexer o doce para que nao queime. horas de paciencia para muito prazer gastronomico!
e quanto à carne argentina, é bom que saibas quais os spots indicados para os possiveis turistas apreciadores!! :)
uma grande beijoca e continua a escrever, pois entre tubos de ensaio, pipetas e microscopios, é bom ter um laivo de natureza e do que é a vida de um biologo no campo!
inês s.