9 de dezembro de 2008

décimo quinto

Às vezes dão-me uns cheliques, umas fraquezas súbitas, cuja visita nunca é agradável. Isto desde que cheguei aqui. Começa por que me sinto certa manhã especialmente cansada, ou o calor da tarde me dilata as ideias, não sei. Os joelhos desatam a doer, os músculos viram gelatina, arrasto-me trilho acima, trilho abaixo com ganas de sentar-me a cada dois minutos, bebo toda a água que carrego numa só hora e, ao voltar a casa, queixam-se as têmporas. Momentos depois o estômago. E temos a festa armada para os dois dias seguintes.

Com pontaria certeira, tenho conseguido que a coisa se dê num dos dias livres a que tenho direito. Isto de trabalhar por turnos e obrigar a que outro nos substitua em caso de ausência é um stress acrescido ao problema em si. Passar mal uma manhã pode ter como consequência que uma das outras perda a folga e tenha que trabalhar nove dias seguidos. Assim, faz-se tudo o que se pode para levantar o rabinho e pôr as pernas a mexer. É que nove dias custam, principalmente agora que mudámos outra vez de grupo de estudo e estes animais têm território a três quilómetros daqui. Pensar-se-á que três quilómetros não é assim tanto, que umas corridas domingueiras em Monsanto rematam lindamente a questão e sem qualquer drama. Pois será. Informo que começar o dia às cinco e meia da manhã, ainda noite escura, palmilhando esses malditos quilómetros na selva com as galochas não tem a mesma piada. Principalmente porque, ao chegar, há então que começar a seguir-se os animais. Ou seja, o dia vai começar ali, três quartos de hora depois. E, claro, a ideia de o terminar no pico dos 35 graus mais húmidos que conheci e ter que suar todo esse caminho de volta é exasperante.

O lado bom deste novo lugar (com alívio continuam a encontrar-se lados bons) é o salto Arrechea, que se encontra no final do caminho. Um salto bem pequeno tendo em conta a dimensão das águas que caem por aqui mas, por isso mesmo, mais acessível. Uma plataforma de madeira montada na parte superior permite-nos atravessar o riacho mesmo onde a água perde o chão. Encostados ao varandim vemos, num enquadramento de fotografia, a água que cai lá em baixo, as copas verdes que a rodeiam, ao fundo uma língua castanha de rio e, ainda mais além, de novo o verde brasileiro. Palmeiras altas a meio caminho ajudam a organizar espacialmente as ideias. É um postal vivo, tanto como a primeira visão do conjunto das imensas cataratas ou da garganta del diablo. Aqui, no entanto, temos o extra de, lá em baixo, se formar uma piscina natural. E a sensação de entrar nessa água fria (bem mais fria que no rio) e se ficar envolto em vegetação, de olhar extasiado a água que tropeça lá do alto e se precipita, as rochas negras em que ela bate cá em baixo, de sentir um vento morno na pele, essa sensação, é especial. Quem não desejou estar, por uns momentos, dentro de um anúncio da "Fa" ou da "Timotei"? Aqui está a oportunidade. Confirma-se, bastante agradável!

Portanto, para minimizar o frete dos seis quilómetros diários (extra aos percorridos realmente a trabalhar), tenho que será uma boa ideia passar a levar umas sandochas e, ora ficar depois da labuta, ora ir mais cedo e mandar umas mergulhaças antes de começar. Só para animar a malta. Amanhã tratarei de pôr o plano em prática.

Para o dia sete, esse especial pelo qual recebi alguns simpáticos comentários no último post (que agradeço), havia planos de grande festaça. Três despedidas a somarem-se aos vinte e sete da je. Concordou-se em organizar o asado para a noite de seis. Na tarde desse dia, quem pudesse iria passear a um antigo parque de campismo que há dentro do Parque e onde, aparentemente, também se tomam boas e pouco turísticas banhocas – como se observa, o calor aperta com força e nada tem mais importância do que o acesso à água.

Infelizmente esse dia passei-o na cama. Um dos tais. Dormi toda a tarde, na esperança de exorcizar os demónios virais. Pela noite o ar agitava-se no vaivém de gente entre a cozinha e o telheiro, trazendo e levando, preparando, ocupando-se. Consegui ir e comer um pouco do cuscuz vegetariano cozinhado para evitar a carne da ocasião. Depois, obedecendo a novo queixume estomacal, regressei à cama. Ouvi-os rir e conversar lá fora, enrolei-me, dediquei-me por momentos a Saramago, pu-lo de lado, fixei por baixo as traves de madeira, o colchão da Mica – abóbada nocturna – empurrei-o com os pés para passar o tempo enquanto a pança me ameaçava “pára quieta!”. E nisto estava quando, apanhando-me desprevenida, um exército de sorridentes regalos se me apresentou enfilado no quarto (o tal de dois por três). Não me surpreendem as pessoas muitas vezes mas esta foi uma delas.

O cumpleaños propriamente dito, ou seja, o dia seguinte, já teve direito a praia – que o físico andava melhor. Apepú, que os mais atentos já conhecerão. Tosta de um lado, tosta do outro, mergulha daqui, nada para ali e dá de comer às "bariuis", tadinhas, que umas picadelas não fazem mal a ninguém e se te dão comichões de morte durante uma semana, olha, azar, é o que temos!

À noite, havia ainda que soprar a vela deixada por acender na noite anterior. Todos concordaram em preparar comida e fazer piquenique em Arrechea – sim, a loucura dos três quilómetros para cá e para lá! Fascinar-se com a natureza é assim, causa delírios colectivos que resultam em carregar bolos, garrafas de vinho, saladas, pão, carne, sendero Macuco abaixo. As moneras do turno da tarde aguardavam no salto, impacientes, descrentes na nossa mobilização e geladas com a espera depois de um banho quase nocturno. Nunca o pão com chouriço lhes soube tão bem. A lua estava pela metade. Meia lua iluminando onze bocas cansadas, esfomeadas, divertidas, partilhando o vinho, gritando pela maionese… Até que por fim se cantou, em português (!), quatro versos de “parabéns a você” – um esforço que muito apreciei – e se atacou, alarvemente, uma tal de chocotorta. Quando digo atacar, quero dizer mãos cheias de chocolate e dulce de leche, uma ronda, duas rondas, três... Para ganhar energias para o caminho, o infindável caminho de volta.

6 comentários:

Inês disse...

Curioso como, quando se fala em viva-voz, parece que o tempo afinal não passou. Agradeço ao senhor Antonio Meucci (http://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Meucci) e posteriores engenhocas.
3 meses e uns dias, quem diria? Só faltou fazermos planos para o fim-de-semana para eu achar que ainda no sábado tínhamos estado a beber um copo.
Saudades!

Bjs,
Inês

sara disse...

siiiiiimmmm....... :D adorei ouvir-te! mas a mim aumentou as saudades. não posso crer que não falávamos há 3 meses. quando ouvi a tua voz foi tipo choque. TCHAN! o cérebro a ir buscar a informação a mil à hora, meio confuso. mas ao fim de 5 minutos tive exactamente essa sensação. o que fazes sábado à noite? eheheh...
BJINHOS

Aline Cortez disse...

Inês,
Obrigada pelo link. Facilitou bastante !
Desta vez não tive que googlar....
Vergonha minha, que não sabia o nome do ilustre engenheiro. Lá que não tinha sido o Bell, tinha uma ideia. Vaga !!!!
E foi preciso ser uma biológa (ou veterinária ?) a informar-me. Bem haja ! Bjs

Sara,
Os parabéns em português deve ter sido muito bom. Muito queridos !
Toma bons banhos por todos nós, que aqui o frio é muito.
Bjs
Madrezita

Micas ...que não a gata disse...

Sarita fofa!!! Esqueci-me de te mandar os parabéns... que vergonha! mas acredita que me lembrei do dia dos teus anos... quanto mais não seja porque a mãe Lili me foi lembrando ao longo da semana! Muitos beijinhos atrasados mas com o mesmo carinho!!!!

Unknown disse...

Falhei na minha assiduidade, aquela que me fazia regressar todo o santo dia para te ler. Pois que tenho milhentas novidades. A conferência foi um sucesso, lidei com aquilo como um verdadeiro profissional. Cresce-me o ego que já se mostrava pequeno, e agora tenho tido dificuldades em entrar em elevadores e em passagens estreitas. Que volte depressa e que se te passe esse cansaço com um belo pastel de belém para o qual faço questão de te convidar no regresso à pátria.

beijos

C.M. disse...

Cheliques, acho que é a minha especialidade:-D
Pois pelo que descreves do dia-a-dia na floresta entre a picada do mosquito, o déficit de horas de sono e os muitos quilómetros á pata e ao calor, acho que talvez se consiga encontrar a etiologia do chelique?
Peço desculpa pela falta de assiduidade mas entre o chelique africano e as mil chatices com que me debato, acho que esturriquei os miolos!
Essa coisa do banho "Timotei" cheirou-me muito bem.
Agora regresso ao mundo do chelique que são o meu ganha-pão;-)
Beijocas, e trata de dormir e descansar entre turnos!