26 de setembro de 2008

sétimo

Está a fazer um mês que saí de Lisboa. O champô ainda vai a mais de meio, a pasta de dentes um pouco menos. Mas estar longe de casa não é complicado quando cada dia traz consigo novidades. Durante todo este tempo tenho tido que ir para o campo sem direito a folgas, dada uma crise no joelho esquerdo da Taylor que fez com que os turnos fossem por água abaixo. Esta semana, no entanto, já regularizámos a situação. O meu próprio joelho começava a queixar-se de tantas andanças… Tratei de ir à cidade comprar dois pares de palmilhas para forrar as galochas, a ver se amortização extra ajuda. Isto de “ir à cidade” ser acontecimento de relevância também tem a sua graça. E não é que a cidade tenha muito que ver ou que fazer – apenas o inevitável supermercado, as visitas aos correios e um ou outro jantar ocasional – mas, por ser o que há, cresce em importância. Por vezes também lá vamos para a Mica tentar vender livros, uns encantadores molhinhos de folhas cheias de desenhos a preto e branco, que a própria faz. [Impressionantes recursos têm pessoas como ela para responder a uma economia que deixa muito a desejar]. Diz que em Buenos Aires se vendem bem, embora nunca esteja segura do preço a que os deve pôr. Aqui não tem sido tão fácil. A cidade é pequena e, apesar de ser bastante turística, temos sempre que regressar ao Parque às sete e um quarto, que é quando parte a última camioneta. Perde-se a hora do jantar e, com ela, a altura em que o turista sai à rua. Da última vez que o fizemos, separámo-nos à chegada. Ela para vender, eu para comprar (as palmilhas). Quando nos voltámos a encontrar no café, vinha com um ar frustrado. Então? Não vendeste?, perguntei-lhe. Bem, na verdade vendi quatro. O que me pareceu bem bom! Mas continuou: depois fui para a zona dos restaurantes brasileiros e tentei falar português, como temos praticado, mas todas as pessoas olharam para mim como se falasse chinês! Estava mesmo desanimada, fiquei com pena. Pedi-lhe que me repetisse, em português, o que tinha dito aos brasileiros (porque sei que são duros de ouvido, mas tenho-me esforçado por lhe ensinar um português com sotaque, que possa ser útil). Bom – respondeu-me com olhos tristes – eu disse: vou a deixar-vos este livros com dibujinhos por um rato e logo volto. Não me contive. Comecei a rir, a rir, cada vez me ria mais, numa corrente incontrolável, enquanto ela me fixava, expectante e infantil. Que foi? O que é que eu disse? Quando consegui acalmar e lhe expliquei que, em português, além de “dibujinhos” não querer dizer nada e pôr um “inho” no fim das palavras não as torna mais válidas, não podia falar de ratos para se referir a tempo e que rato, na realidade, era a nossa palavra para “ratón”, ela nem queria acreditar. Quer dizer que andei a dizer às pessoas que lhes deixava livros por ratos?? Pois, isso mesmo.

Entretanto, mais vai acontecendo. Decidimos, certa tarde, ir até à garganta do diablo, o maior salto que existe nestas cataratas e que é, sem dúvida, colossal. Não sei bem o que nos passou pela cabeça. Ia para as seis da tarde mas, feita a proposta, soou-me perfeitamente exequível. Estávamos perto (julgava eu). Sabíamos que era algures no fim do caminho largo de terra batida onde o dia de perseguição primatológica nos tinha levado e, como os bichos não tinham dado muito trabalho essa tarde, pusemo-nos a caminho. Um pé depois do outro, ladeando a linha do comboio turístico, fomos cheirando o ar morno da tarde. Brincando com as folhas das mimosas que se fecham se lhes tocamos. E, ao fim daquilo a que poderíamos chamar “un rato”, sendo que nada indicava a tal garganta, estugámos o passo. Começámos a bufar certa impaciência. A perceber que a luz ia diminuindo… Mais de meia-hora depois chegámos ao início da plataforma que nos leva sobre as águas e suspirámos, sem no entanto saber que dali até à garganta, mesmo por cima do rio, nos faltava ainda percorrer um quilómetro! Acabámos por fazê-lo a correr. À medida que corria e via o rio passar por mim manso, imenso, cheio de ilhotas aqui e ali, de aves a preparar-se para dormir, perguntava-me se valeria a pena tanta agitação para ver uma queda de água. Não é coisa que falte neste parque. Mas sucedia aquilo que sempre sucede com o incerto, assim que se enceta um caminho: dá-se um passo mais, não se volta atrás sem lograr. Mesmo que o fim dure apenas um instante. Ou não é assim? Seguia eu então com estes pensamentos quando comecei a ouvir o som da água a cair ao fundo. Por fim! Ficamos cinco minutos, disse em voz alta. Mais do que a noite, preocupava-nos o facto de não termos avisado o pessoal na estação de campo que íamos chegar mais tarde – porque, a bem dizer, não fazíamos ideia de que teríamos que andar quatro quilómetros até à garganta. O peso dos nossos passos fazia vibrar e soar as passadeiras metálicas. [Plonc, plonc, plonc…] Ao longe, comecei a ver a nuvem de vapor que sempre acompanha a garganta. Fomos abrandando o passo, assimilando devagar o que nos rodeava, em espanto, e creio que estagnámos bem antes das barreiras do miradouro. Senti-me em transe absoluto. O termo “abismo” nunca antes tinha tido cara. Naquele recanto do mundo, um rio é engolido num buraco sem fim. Cai com tal força lá em baixo, que levanta infinitas gotículas que vêm subindo e não permitem que vejamos o fundo. Fora de mim, não consegui sequer perceber se a emoção que sentia era exaltação, se puro pânico. Qualquer coisa que se instala no peito. Tão poderoso como deixar-se mergulhar nas estrelas à noite e dar-se conta que ser humano ou um grão de areia não faz qualquer diferença. Um instante brutal de existência em nós que durou, realmente, cinco minutos – não tinha estofo para mais. E abandonámos o local em silencioso acordo. O caminho de volta foi feito em metade do tempo e parcialmente à luz mortiça das lanternas que, felizmente, andam sempre nas mochilas. Entretanto apanhámos sinal no rádio e falámos para o CIES: estava tudo tranquilo, pouco passava das sete.

Uns dias depois, uma das guardas do parque fez anos e prepararam-lhe uma festa surpresa na garganta. Um “asado” pela noite, porque tudo o que é celebração nesta terra passa por consumir pedaços de vacas. Parece-me que nada se faz sem que um fogo se acenda e as pessoas, de todas as idades, se juntem a comer carne com carne (com sorte, um naco de pão). Nós, "moneras", fomos avisadas à última da hora pelo Martín, outro guarda que vive a duzentos metros daqui e que nos veio buscar no seu Citroen AX. Sem pressa, o veículo levou-nos ao longo da mesma estrada que, uns dias antes, vencêramos para chegar à garganta. Íamos agora em lotação esgotada: cinco no banco de trás em perfeito estado-sardinha e outros dois à frente. O arvoredo denso e o negrume que o envolvia pareciam até confortáveis vistos de dentro do carro. No rádio passava “Wish you were here” e calámo-nos para ouvir. Sete almas que se rendiam, em simultâneo, à imposição daquela guitarra inicial. No escuro, dormentes por um balanço de terra tosca, de pedras no caminho e céu aberto em cima. Em respeito ao simples facto de estarmos ali, a caminho de uma fogueira acendida sobre o mais poderoso local que conhecemos. So, so you think you can tell, heaven from hell?...

18 comentários:

Mónica disse...

Bolas mulher...é que tens mesmo jeito para contar histórias. Fiquei sem mais palavras. Que fim! Acho que isto vai dar livro...

Mónica disse...

Bolas mulher...é que tens mesmo jeito para contar histórias. Fiquei sem mais palavras. Que fim! Acho que isto vai dar livro...

Unknown disse...

É verdade! Deixaste-me em suspense até ao fim da "garganta", só falta mesmo ouvir o barunho da água a cair porque o retrato está lá!! Até a música é a adequada!! Isto são exclamações a mais, mas é como eu estou!!!!!
Quanto à carne bem disse que era "fraca" e ainda voltas uma carnívora....
Beijos grandes
Mia

Aline Cortez disse...

Querida Filha, hoje conseguiste algo fantástico. Eu, fiquei com os olhos húmidos com a tua descrição e arrumaste-me com os Pink Floyd.
Claro que a água já estava nos meus olhos à conta da Mica e os seus rat(inhos). Pode ser que um dia a ponhas a conversar com o titiokrido e inhos e de lado e itos do outro, talvez se entendam.
Também me fizeste recordar um dia longinquo.. um fim de tarde... e quatro seres numa estrada no Nordeste Brasileiro... enfim o resto tu sabes !
Bjs mil
Aline

Aline Cortez disse...

Ah é verdade ! Com a emoção nem me lembrei de te dizer. Filha estás a lavar pouco o teu cabelo !!!! E os dentes !!?? Não vás para a cama sem os lavar. Com muita força. Várias vezes. E as gengivas também. E já agora quando não há pão o que comes em vez da carne ? Ai que ralação !...

MB disse...

Querida Sara:
Por cá tudo igual, na lufa-lufa do costume. É 6ª feira de madrugada e tou de banco e domingo de banco estarei,do qual sobra o sábado para estar em coma... Mas eu adoro o que faço, mesmo quando aparecem pais ás 5 da manhã a dizer que a criança tá a vomitar porque "teve" a lamber um desenho feito com caneta de feltro amarela...certo.
Novidades do país não existem porque está sempre tudo mal e anda meio mundo a enganar outro meio. O Hugo Chavez tá cá e diz que se sente em casa (!!).
A nossa viagem a Barcelona foi optima. Deu ainda para passear até à fronteira francesa e os teus tios reviram passeios de ha 3 décadas:p. Parte má mesmo foi aquela em que vomitei um almoço excelente (misto de congestão pela simpatia da p... que nos serviu juntamente com as curvas da montanha)...
De resto, o tempo passa, ai se passa, e tu continuas bem na selva, felizmente com estes luxos das novas tecnologias que fazem a ponte para o outro hemisfério
beijinhos grandes

C.M. disse...

Me gustan tus descriciones, si!Pois ensinar português tem riscos!
A tua estória lembra-me uma espanhola que trabalhou comigo e ficou alcunhada de "La ratita", á conta de ter sempre "un ratito" de qualquer coisa (hambre,frio...)ora como é bom de ver a pobre levou algum tempo até que percebesse o motivo dos olhares esquisitos e sorrisos disfarçados quando proclamava com orgulho a alcunha que sus colegas lhe tinham posto!
A carne argentina é famosa, pelos vistos estás a ficar rendida, mas se quiseres posso sempre mandar-te umas latitas de atum:-D
O sítio que descreves parece de facto sobrenatural, heaven or hell?, depends on the mood.
Beijocas

Unknown disse...

Brutal. Tu tens jeitinho com as palavras. Por isso é que te admiro. Sabes fotografar com máquina e com palavras. Fascinante.

E vês, os ratos estão em todo o lado. ;-)

beijos

ttk disse...

SO...





...SO I THINK YOU CAN TELL.


Bjinhos susurrantes
Manel

ttk disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Inês disse...

I'm speechless!
Também só consigo pensar no livro. Tornou-se uma obrigação escrevê-lo.

Bjs,
Inês

Unknown disse...

Sublime esse teu dom de desenhares tudo em palavras.

cada frase aparece como um desenho num caderno de viajante, cheio de fauna e flora, e aguarelas com tinta da china. e a descrição real do inenarrável, tornado visível e presente, do alto da garganta em plena selva.

brilhante sara. quero ler tudo, rendido.

JB

T2 para Venda Parque Olaias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
T2 para Venda Parque Olaias disse...

Palavras para quê?!?! Os comentários a mais umas folhinhas do teu futuro livro, dizem tudo... As descrições são de uma perfeição tal, que tens que começar a deixar as cenas dos próximos episódios:)
Por cá, o Outono já se faz notar, de resto tudo igual, em breve receberás uma remessa do prometido.
Beijocas gds.

calvinn disse...

para ser sincero, não tenho tido muita paciência para te escrever aqui coisas. beijinhos grandes e bom trabalho**********

p.s. e Viva o Outono, finalmente :)

Candida Cortez disse...

Ola Sara:)
Será desta que consigo comunicar por aqui?Não vou repetir o que disse no gmail .bjs

Candida Cortez disse...

Ola Sara:)
Será desta que consigo comunicar por aqui?Não vou repetir o que disse no gmail .bjs

Unknown disse...

Brilhante, Brilhante, Brilhante!!! Sem palavras Prima...:)

Beijo Beijo,
Pima