26 de setembro de 2008

sétimo

Está a fazer um mês que saí de Lisboa. O champô ainda vai a mais de meio, a pasta de dentes um pouco menos. Mas estar longe de casa não é complicado quando cada dia traz consigo novidades. Durante todo este tempo tenho tido que ir para o campo sem direito a folgas, dada uma crise no joelho esquerdo da Taylor que fez com que os turnos fossem por água abaixo. Esta semana, no entanto, já regularizámos a situação. O meu próprio joelho começava a queixar-se de tantas andanças… Tratei de ir à cidade comprar dois pares de palmilhas para forrar as galochas, a ver se amortização extra ajuda. Isto de “ir à cidade” ser acontecimento de relevância também tem a sua graça. E não é que a cidade tenha muito que ver ou que fazer – apenas o inevitável supermercado, as visitas aos correios e um ou outro jantar ocasional – mas, por ser o que há, cresce em importância. Por vezes também lá vamos para a Mica tentar vender livros, uns encantadores molhinhos de folhas cheias de desenhos a preto e branco, que a própria faz. [Impressionantes recursos têm pessoas como ela para responder a uma economia que deixa muito a desejar]. Diz que em Buenos Aires se vendem bem, embora nunca esteja segura do preço a que os deve pôr. Aqui não tem sido tão fácil. A cidade é pequena e, apesar de ser bastante turística, temos sempre que regressar ao Parque às sete e um quarto, que é quando parte a última camioneta. Perde-se a hora do jantar e, com ela, a altura em que o turista sai à rua. Da última vez que o fizemos, separámo-nos à chegada. Ela para vender, eu para comprar (as palmilhas). Quando nos voltámos a encontrar no café, vinha com um ar frustrado. Então? Não vendeste?, perguntei-lhe. Bem, na verdade vendi quatro. O que me pareceu bem bom! Mas continuou: depois fui para a zona dos restaurantes brasileiros e tentei falar português, como temos praticado, mas todas as pessoas olharam para mim como se falasse chinês! Estava mesmo desanimada, fiquei com pena. Pedi-lhe que me repetisse, em português, o que tinha dito aos brasileiros (porque sei que são duros de ouvido, mas tenho-me esforçado por lhe ensinar um português com sotaque, que possa ser útil). Bom – respondeu-me com olhos tristes – eu disse: vou a deixar-vos este livros com dibujinhos por um rato e logo volto. Não me contive. Comecei a rir, a rir, cada vez me ria mais, numa corrente incontrolável, enquanto ela me fixava, expectante e infantil. Que foi? O que é que eu disse? Quando consegui acalmar e lhe expliquei que, em português, além de “dibujinhos” não querer dizer nada e pôr um “inho” no fim das palavras não as torna mais válidas, não podia falar de ratos para se referir a tempo e que rato, na realidade, era a nossa palavra para “ratón”, ela nem queria acreditar. Quer dizer que andei a dizer às pessoas que lhes deixava livros por ratos?? Pois, isso mesmo.

Entretanto, mais vai acontecendo. Decidimos, certa tarde, ir até à garganta do diablo, o maior salto que existe nestas cataratas e que é, sem dúvida, colossal. Não sei bem o que nos passou pela cabeça. Ia para as seis da tarde mas, feita a proposta, soou-me perfeitamente exequível. Estávamos perto (julgava eu). Sabíamos que era algures no fim do caminho largo de terra batida onde o dia de perseguição primatológica nos tinha levado e, como os bichos não tinham dado muito trabalho essa tarde, pusemo-nos a caminho. Um pé depois do outro, ladeando a linha do comboio turístico, fomos cheirando o ar morno da tarde. Brincando com as folhas das mimosas que se fecham se lhes tocamos. E, ao fim daquilo a que poderíamos chamar “un rato”, sendo que nada indicava a tal garganta, estugámos o passo. Começámos a bufar certa impaciência. A perceber que a luz ia diminuindo… Mais de meia-hora depois chegámos ao início da plataforma que nos leva sobre as águas e suspirámos, sem no entanto saber que dali até à garganta, mesmo por cima do rio, nos faltava ainda percorrer um quilómetro! Acabámos por fazê-lo a correr. À medida que corria e via o rio passar por mim manso, imenso, cheio de ilhotas aqui e ali, de aves a preparar-se para dormir, perguntava-me se valeria a pena tanta agitação para ver uma queda de água. Não é coisa que falte neste parque. Mas sucedia aquilo que sempre sucede com o incerto, assim que se enceta um caminho: dá-se um passo mais, não se volta atrás sem lograr. Mesmo que o fim dure apenas um instante. Ou não é assim? Seguia eu então com estes pensamentos quando comecei a ouvir o som da água a cair ao fundo. Por fim! Ficamos cinco minutos, disse em voz alta. Mais do que a noite, preocupava-nos o facto de não termos avisado o pessoal na estação de campo que íamos chegar mais tarde – porque, a bem dizer, não fazíamos ideia de que teríamos que andar quatro quilómetros até à garganta. O peso dos nossos passos fazia vibrar e soar as passadeiras metálicas. [Plonc, plonc, plonc…] Ao longe, comecei a ver a nuvem de vapor que sempre acompanha a garganta. Fomos abrandando o passo, assimilando devagar o que nos rodeava, em espanto, e creio que estagnámos bem antes das barreiras do miradouro. Senti-me em transe absoluto. O termo “abismo” nunca antes tinha tido cara. Naquele recanto do mundo, um rio é engolido num buraco sem fim. Cai com tal força lá em baixo, que levanta infinitas gotículas que vêm subindo e não permitem que vejamos o fundo. Fora de mim, não consegui sequer perceber se a emoção que sentia era exaltação, se puro pânico. Qualquer coisa que se instala no peito. Tão poderoso como deixar-se mergulhar nas estrelas à noite e dar-se conta que ser humano ou um grão de areia não faz qualquer diferença. Um instante brutal de existência em nós que durou, realmente, cinco minutos – não tinha estofo para mais. E abandonámos o local em silencioso acordo. O caminho de volta foi feito em metade do tempo e parcialmente à luz mortiça das lanternas que, felizmente, andam sempre nas mochilas. Entretanto apanhámos sinal no rádio e falámos para o CIES: estava tudo tranquilo, pouco passava das sete.

Uns dias depois, uma das guardas do parque fez anos e prepararam-lhe uma festa surpresa na garganta. Um “asado” pela noite, porque tudo o que é celebração nesta terra passa por consumir pedaços de vacas. Parece-me que nada se faz sem que um fogo se acenda e as pessoas, de todas as idades, se juntem a comer carne com carne (com sorte, um naco de pão). Nós, "moneras", fomos avisadas à última da hora pelo Martín, outro guarda que vive a duzentos metros daqui e que nos veio buscar no seu Citroen AX. Sem pressa, o veículo levou-nos ao longo da mesma estrada que, uns dias antes, vencêramos para chegar à garganta. Íamos agora em lotação esgotada: cinco no banco de trás em perfeito estado-sardinha e outros dois à frente. O arvoredo denso e o negrume que o envolvia pareciam até confortáveis vistos de dentro do carro. No rádio passava “Wish you were here” e calámo-nos para ouvir. Sete almas que se rendiam, em simultâneo, à imposição daquela guitarra inicial. No escuro, dormentes por um balanço de terra tosca, de pedras no caminho e céu aberto em cima. Em respeito ao simples facto de estarmos ali, a caminho de uma fogueira acendida sobre o mais poderoso local que conhecemos. So, so you think you can tell, heaven from hell?...

20 de setembro de 2008

sexto

No dia em que aqui cheguei, primeiro de Setembro, senti que quem estava me olhava com desconfiança. Pouco ou nada diziam, nem deram sinal de tentar evitar que ficasse com as malas todas à porta enquanto a Annie não aparecia. Não fosse a hippie salvar-me e teria, de facto, acontecido. Umas horas depois de mim chegaram as duas americanas e, no dia seguinte, a Mica. Passou-se o mesmo com todas: a sensação de estar a mais. Entretanto, com o tempo e a convivência, tudo isso já passou. Outro dia, diziam-nos que a intenção não era essa. Enfim, por princípio, e até prova de desmerecimento válido, eu opto sempre pela simpatia. Não entendo muito bem as caras fechadas. Mas pronto, agora até damos umas boas gargalhadas. Contaram-me recentemente que havia quem julgasse aqui que eu era norueguesa. Norueguesa! Eu! O meu metro e oitenta, a alva tez, cabelos louros e aquosos olhos azuis, claro! Alguém tinha espalhado esse boato porque, em não se recordando de que país europeu eu vinha, calculou arriscar na Noruega um ligeiro tiro ao lado. Porque, no fundo, que diferença têm Portugal e a Noruega se ambos ficam na Europa?? O raciocínio é mais ou menos este. Aliás, chegada havia dois dias, perguntaram-me quem tinha descoberto Portugal. E quando. [Juro] Houve então uma pausa, aquele silêncio na mesa, enquanto eu dava corda às sinapses e tentava entender a pergunta. Porque, no imediato, pensei tratar-se de qualquer coisa mais complexa, que eu não estava a alcançar. Ainda repeti, abanando a cabeça, baralhada, quem descobriu Portugal, mas como?..... E a voz foi-se-me sumindo à medida que a incredulidade aumentava. Os rostos deles (todos!) suspensos no meu. Acabei por conseguir soltar um bom, ninguém descobriu, a nossa história é diferente da vossa. Ao que assentiram, parecendo elucidados e, de súbito, também mais iluminados. Como se se tivessem lembrado de qualquer coisa. É engraçado o olho com que vemos o mundo.

Bom, mas voltemos à Noruega. A senhora que trata de algumas limpezas e organização aqui no CIES contou-me que achou deveras estranha a chegada de uma norueguesa vinda do Brasil (porque lá isso sabiam), que falava português, tinha um aspecto muito pouco gringo e, além do mais, se dirigia a ela num castelhano de forte sotaque espanhol – julgo que aqui basta que se diga “tu” em vez de “vos” para logo se ser catalogado. Dizem-me agora, em pose de assunto sério, com pancadinha nas costas e algum orgulho, que já estou melhor. "Se te cambia el acento". Que seria uma vergonha andar por aqui a falar como os espanhóis! Enfim, uma risota. Parece que, na sede do CIES, ainda há muita gente que se refere à “norueguesa”. Não sei se lhes tire essa ilusão… Ainda não decidi se hei-de ser a portuguesa, a brasileira, a espanhola ou a norueguesa.

Os dias com os monos complicam-se. A Annie anda a ficar mais séria com o nosso treino porque o stress nova-iorquino recomeça a subir-lhe à cabeça. Portanto, temos que tratar de aprender rapidinho o etograma (lista de comportamentos que interessa registar) e de deixar de baralhar umas caras macacas com as outras. Entender, de uma vez por todas, que o Trucho não é o Jesus e que a Chicca e a Estela, ainda que irmãs, se podem distinguir através de uma mancha na bochecha direita. Como se nos escapa tão conspícua característica, de facto, não sei! O que vale é que, apesar de o grupo ser constituído por vinte e sete animais, só vamos analisar os adultos. Quatro machos e sete fêmeas. Alessandro, dominante de serviço, distingue-se pelo porte altivo, atitude blazé e olhos demasiado juntos. Sempre que me mira de frente tenho a nítida sensação de que é vesgo, o que não se coaduna muito bem com a posição que ocupa na hierarquia. Cá no meu mundo, ora pois! Mas gosto dele, é tranquilo e transmite autoridade.

A fêmea dominante chama-se Thelma, tem a pelagem muito escura, uns olhinhos meio asiáticos e o nariz achatado. Apesar de ser dominante, não é aquela que tem mais crias. Na verdade, é a Clara, criatura deveras subordinada, que tem mostrado ser a grande parideira do grupo. O que me intriga. Supõe-se que uma alta posição social se correlacione directamente com o fitness do animal. Ou seja, o facto de ter um elevado status deveria fazer com que os seus genes fossem transmitidos à geração seguinte com maior representatividade do que os dos outros indivíduos do grupo. Sei que quantidade não é sinónimo de qualidade e que os filhos da Clara podem vir a ser uns franganotes que mal se consigam reproduzir eles próprios. Pode ser… Mas se alguns já estão crescidinhos e sem aparentes problemas, bom, não sei o que pensar.

Ontem à tarde o Jesus e a Yoli decidiram cortejar-se. E, como lhes foge o pezinho para o exibicionismo, acharam por bem fazê-lo no “paseo superior”, à vista de toda e qualquer almita turista. Que delirou, pois que os bichos guincham e fazem caretas um ao outro, ladeando a cabeça com denguice para a direita e a esquerda. Tem muita graça. A maior parte dos turistas, para dizer a verdade, não se apercebe de que assiste a um comportamento menos vulgar. Mas gostam na mesma. Entusiasmam-se. Chegam a tornar-se difíceis de controlar. A cena tende a começar com um par de argentinas cinquentonas, gorduchas e bem oxigenadas, a exclamar a plenos pulmões: ai, ai, mira, mira los monitos!! Ao que se segue uma tropelia humana, acercando-se dos bichos. Uuhhhhh…mira… que hermosos! Y la cria con su mamá…. Re lindo!! Em questão de segundos temos um aglomerado de trinta pessoas, de diversas idades e aspectos, em aparente adoração aos macacos. E digo aparente porque – e isto é algo que me surpreende sempre – tão depressa chegam como, de repente, se desmaterializam. Como se a observação tivesse prazo de validade, o suficiente para levantarem bem alto, acima das cabeças, um número relevante de máquinas fotográficas que disparam com sofreguidão. E então seguem o seu caminho, até ao entretenimento seguinte. Um tucano. Um coati. Lo que sea. Felizmente.

Para seguir monitos, há-que ter costela alentejana. Pouca pressa, mais olho para ver que perna para caminhar. Um dos erros que cometíamos amiúde, de início, era get ahead of the monkeys. Sai-me isto em inglês porque a frequência com que ocorria era tal, que a frase se tornou quase uma expressão do quotidiano entre nós. Agora já aprendemos. Eu e a Mica, numa atitude claramente mais latina, deixamo-nos ficar até à última, de preferência espojadas e com borboletas mil a pousarem-nos no nariz, nas mãos e na roupa, até termos a certeza absoluta de que os macacos estão em movimento. Aí, então, damos corda aos sapatos. Uma espécie de jogging em perseguição amigável. Corridinhas ocasionais. Mas funciona. Quando no campo e ao alcance da voz, comunicamos umas com as outras através de “ops”. Um “op” gritado para o ar significa “estou aqui”. Dois “ops” dizem “estou aqui e tenho macacos!”. E três “ops” pedem à outra pessoa que largue o que está a fazer e venha ao nosso encontro. Claro que temos rádios, mas assim poupa-se energia (além do que nem sempre nos organizamos com as cargas dos mesmos e há dias em que, pela escura e remelenta madrugada, nos apercebemos que não há baterias carregadas). À conta deste original modo de comunicação, tive um episódio caricato – também nos primeiros dias de macaquice. Hoje sei que não posso pôr-me aos “ops” em zonas onde haja turistas. Just too embaracing… Mas, naquela nervoseira inicial, consegui soltar um sonoro “op” à passagem do comboio carregadinho de pessoas que voltavam da Garganta del Diablo. Qual não é o meu choque quando me apercebo que, nas minhas costas, uma resma de gente me respondia com o grito do Tarzan! Virei-me e vesti um ar duro mas o que queria mesmo era desmanchar-me a rir. Visualize-se o modelito completo: galochas até ao joelho, calças enfiadas dentro das mesmas, típica camisa axadrezada para evitar picadas de mosquito, colete cheio de bolsos de onde saem rádios, bússolas, blocos de notas e afins penduricalhos e, para terminar (o ex-libris), lenço na cabeça! É que carracinhas e ácaros no corpo ainda vá, tudo bem, agora bichezas no cabelo eu cá dispenso. E como as palas dos chapéus não deixam olhar para cima, para as copas das árvores, muitas de nós optam pelo lenço. O que, convenhamos, acrescenta caricatura ao figurino. Nesse mesmo dia, uns minutos depois, a Mica saiu afogueada de uma mancha de floresta directamente para uma zona de paseo onde as pessoas vão comprar viagens de barco e, dirigindo-se ao primeiro que passava - sem, no entanto, deixar de buscar constantemente os macacos na vegetação – soltou-lhe um aflito: donde estoy? [Porque andar no meio das árvores e arbustos pode mesmo desorientar]. O senhor, ao que parece, assustou-se. Eu também me assustaria se um animal tão grande me saltasse de dentro da vegetação. Respondeu-lhe, a medo: en el Parque… Creio que lhe deve ter associado um qualquer desequilíbrio mental. E ela, em vez de insistir ou se estender em explicações, encolheu ombros e voltou a meter-se na floresta. Ainda agora dou gargalhadas ao imaginar a cena.

Portanto, como se vê, isto é divertido. Só com a chuva é que ainda não me dou bem.

Deixo-vos alguns dos meus amigos.=)





14 de setembro de 2008

quinto

Ontem deitei-me na cama de rede depois de voltar do campo. O dia tinha sido um bocado chato, os animais moveram-se sempre muito devagar e sempre nos barrancos de onde não os conseguimos ver – só ouvir. Paradas à espera de um som, caindo por vezes no erro de nos adiantarmos aos bichos, custou um bocado a passar. Mas a ideia é saber sempre onde vão passar a noite para que, no dia seguinte, os possamos encontrar pela manhã. Assim, mesmo sem realmente os observar, ficar pelo menos até às duas da tarde é sempre necessário. Dessa altura até às seis podem mover-se um bocado mas já dá para prever a direcção em que o farão e os dormitórios não são assim tantos.

Tardiamente almoçada e banhada, deitei-me na cama de rede, inspirei o ar carregado e lembrei-me do princípio de um livro do Sepúlveda. O meu preferido, O Velho que Lia Romances de Amor. Fraca de memória para repetições, não o posso transcrever. Mas recordo que nos mostrava um céu como uma barriga inchada que cobria cabeças num pueblo à beira-rio, num local florestado como este. Lembrei-me dessa passagem, desse inicio de livro, porque acima de mim o céu inchava a sua barriga cinzento-amarelada e ameaçava borrasca. Tal e qual. A brisa soprava com alguma força, estava quente e pesada, já cheirando a chuva. Fazia levantar as folhas do chão e, a mim, espreguiçar ainda com mais gosto. O cheiro a doce, a plantas, a mundo novo. Se esse céu redondo pudesse escrever, estou certa que teria desenhado a laranja terroso e em letra incerta de criança a palavra “trovoada”. E como é boa uma trovoada em chinelos e mangas curtas, não? Deixei-me ficar felinamente estirada na rede fingindo que lia um livro. Chegaram então, quase em simultâneo, a Verónica e a Mica. A primeira trabalha também aqui no parque com os macacos, mas não no mesmo grupo que nós. É assistente da Clara, que estuda conflitos entre grupos de capuchinhos. A segunda faz parte do meu grupo (é a única não-americana, para além de mim). Ambas argentinas de Buenos Aires. Sentaram-se então por ali, uma a ler, outra a contar-me o resultado da sua ida à enfermaria tirar umas bichezas do pé – que trouxera de El Chaco, uma zona selvagem supostamente muito bonita a Este e muitos quilómetros daqui. A Mica preparou um Mate, que foi passando como manda a tradição, e pediu-me que lhe ensinasse Português. Não me tinha passado pela cabeça que pudesse interessar a alguém aqui aprender o nosso luso idioma! Mas, ao que parece, o Brasil é um país grande e interessante… Resultado: além de andar bem baralhada com o castelhano e o inglês diários – é frequente acordar e, parca em consciência, ter um autêntico bloqueio quanto à língua que devo usar para perguntar as horas -, agora encarno a brasileira em mim e dedico uma hora diária a ensinar palavras à Mica nessa sonoridade que não é a minha. Às vezes, com o cansaço físico dos dias bem mexidos, acabamos a ter enormes ataques de riso porque não conseguimos dar uma para a caixa. A Jen, das duas assistentes americanas a mais velha, tem um espanhol ainda básico. Tal como o inglês dos equatorianos que para aqui andam a fazer um trabalho de ecoturismo. Todas as noites, à mesa do jantar, americanas e equatorianos tentam ensinar os respectivos idiomas uns aos outros. Asseguro: hilariante! Como os argentinos têm uma maneira muito particular de falar, aspirando os esses e substituindo os sons de “ll” e “y” por “chhh”, a expressão castelhana de um americano que aqui aprende a língua resulta em algo que parece uma anedota. Deixa-se ficar a entoação americana, os acentuados altos e baixos e as exclamações frase sim, frase sim, mas numa língua absurdamente caricata. A mistura dos “chhh” com o facto de não conseguirem fazer soar os erres fá-los parecer como tendo uma língua própria, à semelhança do que fazem algumas crianças. Às vezes dá-me ideia que ouço ucraniano, moldavo ou swahili à mesa do jantar!


Temos muito bom ambiente no CIES. Além do grupo da Clara, composto por quatro raparigas (duas dos states e duas daqui), do nosso, e dos tais dois equatorianos, há o Riccardo, italiano que acabou de chegar para tentar desenvolver um projecto de promoção do parque e o Mosquito, argentino que estuda os propriamente ditos mosquitos e as doenças que transmitem. Além disso, apareceram também há uns dias duas raparigas argentinas que andam a estudar para ser guardaparques. À hora do jantar é uma ordenada confusão na cozinha comum. Mas, ao fim de duas semanas, já estamos à vontade uns com os outros. Mesmo aqueles que, por questões idiomáticas, não se entendem. Os meus temores não se cumpriram e os “oh my God” que tenho que ouvir não incomodam, afinal, tanto como isso.

Adoro, na Argentina, que toda a gente se cruze e se fale com um sorriso na cara. Como se problemas e tristezas realmente não pagassem dívidas. E adoro o mate, a infusão de uma erva que ocorria originalmente apenas nesta região do país. Como bebida é um pouco amarga, ainda não me habituei a ela por completo. Mas o ritual é que me encanta. Serve-se num pequeno copo de madeira, forrado ou não a couro, em que as ervas são deitadas e mexidas para acamar o pó, deixando as folhas maiores no cimo. Não terá mais volume do que o correspondente a dois goles grandes. A água aquece-se até ao momento imediato antes da fervura e é colocada num termo. Juntam-se então as pessoas para el mate e há um responsável pelo momento, alguém que convida. Ele (ou ela) vai, assim, deitando água no mate, que é também o nome do copo. Enche a primeira vez e bebe-o, através da bombilla – um género de palhinha de metal com um filtro no fundo para não deixar subir as ervas –, para testar se está bom. A partir daí serve um copo cheio a cada pessoa, que o deve beber até ao fim e devolver sem agradecer. Quem prepara o mate continua a encher e a passar o copo a todos os que queiram. No fim, recomeça. E quem ache que já tem o suficiente deve devolver o copo dizendo gracias. Esse será o sinal de que não quer continuar na roda do mate. Isto faz-me sentir parte de uma tribo pré-histórica e imagino sempre que me junto ao meu clã, ao fim do dia, a debater o movimento das manadas, a necessidade de alguns instrumentos ou o amadurecimento dos frutos. Pensando bem, sentamo-nos à mesa a falar do movimento dos macacos, da orientação nos trilhos, do clima e da comida que é preciso ir comprar à vila. Qualquer semelhança com a dita pré-cultura não será pura coincidência. E o mate dá espaço para que se fale. Me encanta. Surpreendeu-me não apenas pela novidade em si, mas porque toda a gente o faz. Literalmente toda a gente. Em cada casa argentina em que entro, há um mate na cozinha, cheio de erva já usada (não sei porquê, mas não o guardam lavado). Em cada esquina vejo grupos de amigos a tomar mate. Até na camioneta do parque, que nos leva a Puerto Iguazu, vejo o condutor a tomar mate pela tarde! Uma mão no volante, outra segurando o mate. Ao cruzar-me com as argentinas que regressam do campo, vejo-as com um mate já seco. É incrível como algo que implique andar com um termo atrás esteja tão enraizado no dia-a-dia das pessoas.

Adoro também o dulce de leche, que é como quem diz leite condensado em formato cremoso para comer à colher ou barrar onde se queira. Banana com dulce de leche, hmmm... Bolachas com dulce de leche, hmmm… dulce de leche com dulce de leche, hmmm…

Uma última ideia: quem foi a alminha que se lembrou que um poncho seria uma boa solução para andar debaixo de uma tromba de água na floresta enlameada? Alguma que nunca teve que o fazer, por certo. Agora não é o frio mas a chuva que me frita as ideias.

13 de setembro de 2008

(fotos in between #2)

A noite passada foi tempo de conhecer as cataratas debaixo da lua cheia. Aqui fica o registo possível:


E um dia destes cruzámo-nos também com um pequeno jacaré. Como se nada fosse...

8 de setembro de 2008

quarto


Nunca antes na minha vida tinha regularmente começado a fazer o que quer que fosse às seis da manhã. Riam-se os insensíveis que podem, é mesmo verdade. O despertador toca às cinco e meia em ponto. Estranhamente, como já desde antes de viajar andava sem sono, tem custado pouco. Percebo que afinal umas seis horas diárias são suficientes para descansar. Bizarro! Ao fim de apenas uma semana de campo intensivo (e adiante já vão ler o intensivo que realmente é) começa a fazer-me confusão a quantidade de horas de luz que costumava perder pela manhã. Ou o facto de não ver o sol surgir e falhar encontrar a o mundo a acordar. Os sons na floresta, todos os cantos das aves, os movimentos na folhagem, os feixes de luz a entrar através dos buracos que ela deixa... A neblina a descolar-se com lentidão. Não há margem para dúvidas, são momentos especiais, os amanheceres.

Para acompanhar os macacos é preciso encontrá-los na zona em que passaram a noite, antes de se porem em movimento, e é por isso que acordamos ainda de noite. A vestimenta-campo varia consoante a temperatura mas inclui sempre meias para caminhada, calças de secagem rápida, qualquer coisa de mangas compridas por causa dos mosquitos, e galochas. Nos últimos dois dias tem estado um gelo de morte. O clima aqui é incrível! O primeiro dia em que fomos realmente para o campo parecia um inferno. O simples facto de vestir uma camisa em cima da t-shirt deixava-me o corpo a assar e a pele a transpirar. Os óculos embaciavam. A respiração ficava doida à mais pequena subida. Pensei que não era talhada para estas coisas. Entretanto refrescou um pouco, o dia seguinte correu bem melhor a todas nós e lá demos uma segunda hipótese à coisa. Depois veio um dia de chuva e algum frio, um de muito, muito frio e esta manhã, que foi de gelo absoluto. Não estou a exagerar nem um bocadinho, esta amanhã havia geada lá fora. Geada! Quando saímos às seis horas – eu, que não trouxe casaco quente, com um montão de camisolas e camisas enfiadas cabeça abaixo para ver se atingia o “estado cebola” – o ar cortava-se às postas. Senti-me em Andorra, preparando-me para a primeira subida da montanha, só que sem o equipamento necessário. As mãos um bloco de pedra, sem mobilidade, quase a partir. A desgraçada da Mica, uma das minhas colegas, foi-se meter num trilho para espreitar o bambu onde achávamos que os bichos podiam estar e ficou rodeada por uma nuvem espessa que subia a encosta. Enfim. Estaria tudo muito bem no Gerês, mas no Iguazu?? Finalmente, esta tarde, o sol apareceu de novo. Não que tenha ficado calor, mas ao menos descongelámos um bocado. Já não posso olhar para o polar da CM, a long sleave e a camisa de flanela, que são os elementos de vestuário mais quentes que tenho e que, como devem imaginar, já têm pernas e ganharam vida!

Em havendo tempo, pela manhã, comemos qualquer coisa na cozinha comum. Em silêncio, que a essas horas ninguém em seu perfeito juízo pode falar! Tenho conseguido atirar à pressa uma fatia de queijo para dentro de um pedaço de pão, olhado o nível de água na camel back e agarrado ainda uma barrita de cereais. Uma maçã, quando as há.

Saímos a passo despachado. Com o frio que tem estado, largamos vapor e tiritamos durante dez minutos até aquecermos. É preciso percorrer alguns trilhos e atingir o dormitório dos animais assim que possível. Há dormitórios em sítios bastante acessíveis, aqueles em que nos basta seguir os caminhos feitos para os visitantes irem às cataratas e desviar para a floresta apenas por uns cinquenta metros. E depois há os outros dormitórios, uns delirantes locais em que os joelhos são obrigados a amortecer em contínuo e as mãos se esforçam para não agarrar todo e qualquer raminho que passe ao alcance ocular. É num desses sítios que se vê o melhor amanhecer, pois claro, mas é preciso uma certa dose de boa vontade para lá chegar. Bem, é mais um imperativo para quem quer controlar o movimento dos animais. Do ponto elevado de que falo, a que chamaram com originalidade “the mirador” (a imaginar com pronúncia americana!), consegue ver-se uma brutal curva do rio, a pequena e inacessível praia que o lado de cá alberga, a encosta que se ergue no lado brasileiro e os contornos das suas árvores e, acima, os tons rosa e dourados do sol que chega.

Depois a floresta tem daquelas coisas giras: ramos, lianas, lama… Um tralho por dia dá saúde e faz crescer, não é assim? Acho mesmo que a média não está nada má. Sendo que apenas numa das vezes me magooei, ainda melhor. Também agradável é levar com as teias de aranha na cara. Ou melhor, ir com a cara contra as teias – sejamos justos. É um mimo, hoje devo ter comido teia lá para cinco vezes! Terá nutrientes úteis? Espero que sim, já que estraguei o ganha-pão da pobre criatura. Chegar a casa e descobrir que uns ácarozinhos decidiram fazer uma festa nas nossas virilhas e barriga também tem o seu quê. Bem bom. “Bichos colorados” como lhes chamam aqui. Nada de grave, acontece a todos e resulta numas babas que duram quinze dias. Tudo seja assim simples e indolor e dar-me-ei por contente.

Adiante, tenho-me sentido super bem neste papel de investigadora de campo. Bom, por enquanto sou mais pessoa-autorizada-a-andar-por-todo-o lado-e-a-seguir-os-monitos-mas-que-se-perde-que-nem-uma-tonta. Faz parte. Terei que dar algum crédito a mim mesma, dado que é o quarto dia em que saio para o campo. A área não é muito grande mas verdadeiramente confusa. O mapa que temos é imperfeito e conto que, com o tempo, seja mais mental do que outra coisa. Así que no está tan mal. Não sou muito desorientada, não me stresso quando me perco e, de uma maneira ou de outra, todos os caminhos acabam por ir dar a Roma [no caso, ao Sheraton].

Agora aquilo que eu ando - senhores! - aquilo que eu ando… O plano é que duas pessoas trabalhem das seis ao meio-dia e outras duas do meio-dia às seis. Mais coisa, menos coisa. Só que, por enquanto, temos que aprender e praticar tudo. Andar na floresta, conhecer os caminhos, saber acompanhar os macacos sem os perder, saber que direcções tomam, identificar os indivíduos do grupo que vamos estudar agora (pfff… são só vinte e seis, coisa pouca!), estudar a lista de comportamentos… Então, por tudo isto, temos andado no campo oito a dez horas seguidas, o que é dose. No fim já ninguém quer saber dos macacos, é tal o desespero por comida e por pés para cima. Chegamos ao centro à tarde tipo zombies. Mas vale a pena. É fabuloso estar no meio dos animais, vê-los andar por ali, fazer uma data de coisas, estar, verdadeiramente, no seu mundo. Ver como é. Eles estão muito habituados a ter investigadores à perna e já não ligam. Podemos estar a três metros que eles não reagem. Mas é raro acontecer tê-los tão perto. Vai ser engraçado andar no meio do mato, de gravador em punho, a olhar para o ar. Porque essa é outra, passamos o dia a olhar para cima, onde os macacos se deslocam. Mas são coisas que só custam de início, acho que já tenho os músculos do pescoço habituados. Na verdade (e isto acho muito giro), tenho os sentidos todos a tornar-se mais refinados. Ou talvez especificamente adaptados ao novo espaço que ocupo, ao que passo mais tempo a fazer. Tenho os olhos e os ouvidos em “modo macaco”: ouvem restolhar ao longe, vocalizações ligeiras, vêem movimentos subtis e ainda só passou uma semana. Uma semana! Parece-me que passou um mês… Nunca me tinha sentido tão entregue a um trabalho. Afinal talvez seja talhada para o dito.

4 de setembro de 2008

(fotos in between)

Deixem-me avisar desde ja que estou num teclado sem acentos. Mas como eh soh para as fotografias, nao vem dai grande mal...

Tirei estas fotos ah chegada, nas horas em que esperava pelas outras assistentes. Imaginam como fiquei? Completamente doida com tudo!!!











Estas tres acabei de tirar. Sao do CIES, onde estou a viver (Centro de Investigaciones de Ecologia Subtropical). E onde a humidade tende a perseguir-nos sem do nem piedade! No total somos umas dez pessoas e normalmente juntamo-nos ao jantar, numa mescla de castelhano e ingles que da muito que rir. Sinceramente nao sei se prefiro o espanhol das americanas ou o ingles dos equatorianos... ;)





2 de setembro de 2008

terceiro

Aterrei ontem de manhã em Foz do Iguaçu. As malas foram as primeiras a sair, provavelmente porque fui a última a entrar. Os brasileiros têm um modo diferente de fazer o check in, que eu não dominei por completo – está visto – e só quando ouvi as hospedeiras de terra perguntar umas para as outras “fechamos Iguazu?” é que percebi o que se passava. Desatei a esbracejar e a dizer “esperem, esperem, também vou!”. E, muito a correr, lá consegui vir. O voo dura um instante. Várias vezes agradeci em silêncio à Sofia por me reservar um lugar à janela porque as vistas são fantásticas. Ao altifalante o comissário anunciou o pequeno-almoço, enumerando todas as bebidas que iriam servir. Café, café com leite, suco de laranja, coca-cola, coca-cola zero (note-se o pormenor) e guaraná. Decidi pedir um chá, só para contrariar. E a hospedeira respondeu-me, com olhar preocupado: só tem chá quentchi. Hum… Controlei alguma vontade de rir. Nem me ocorrera que pudesse ser frio.

À medida que nos aproximávamos do destino e o avião perdia altitude comecei a inquietar. Abaixo de mim continuavam os talhões de terra mexida, mais ou menos coloridos, com geometrias imperfeitas, mas de floresta via apenas umas manchas aqui e ali. Muito poucas. Será que a mata, afinal, era mais um fragmento que outra coisa? E onde andava o rio para me nortear? Foi assim que, de repente, criando uma linha bem definida no solo, o cultivo deu lugar às copas das árvores. Um espesso manto verde em que a distância parecia congelar as plantas em ligeiros relevos pétreos. Colei a testa ao vidro. O rio serpenteava já por ali e, neste nosso mundo tecnológico, não tirava da cabeça a imagem do Google Earth do local. Afinal estava correcta.

Aterrei em Foz do Iguazu e, saindo para a pista, levei com uma aragem húmida mas bem fresca no corpo. Obrigou-me a vestir a camisola, o que me deixou algo apreensiva dado ter trazido apenas uma (para improvável noite fria, julgava!). Agora talvez tenha que ir ali à cidade soltar uns pesos para dar repouso ocasional à dita camisola e manter-me odorificamente aceitável aos demais. Bem, mas falando em cheiros, a que cheira esta terra de onde escrevo? Cheirava, logo ali no aeroporto, a terra molhada. Sem mais complicações, era só isso, um delicioso cheiro a terra molhada! Senti-me realmente contente por não ter que procurar definições mais rebuscadas. Claro que também cheirava a plantas, plantas para nós exóticas, mas como o aeroporto estava bem ajardinado com relva e pequenos canteiros, a vegetação mais distante ficou mascarada. Relva e terra molhada, embora mais adocicado do que seria na Europa.

O Juamilson, guia turístico conhecido dos tugas paulistanos, estava à minha espera à saída. Muito prestável, foi buscar o carro para que pudéssemos seguir viagem. Era um brasileiro muito amável, pelos cinquenta anos de idade, com quem aprendi qualquer coisa sobre a história do local, a zona das três fronteiras e a relação entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai. Sobre a dificuldade que os poucos índios que sobram têm para se adaptar ao nosso estilo de vida. Sobre o que há por fazer no Brasil e sobre o que se faz a mais. Acabou por ser uma viagem cultural. Pedi-lhe ainda que passássemos na cidade para procurar botas de borracha, o que fizemos tanto do lado brasileiro como depois em Puerto Iguazu, mas do meu número só encontrámos botas amarelas. Um mimo para andar na floresta! Daí que ainda não tenho esse veículo todo o terreno para a macaca aventura.

Finalmente chegámos ao parque. À entrada disse a uma guarda-florestal robusta e sorridente, que procurava a Annie, a americana que estudava os caí. Disse-me que sabiam que eu vinha, o que me tranquilizou, e que podíamos entrar e procurá-la no CIES, que é o centro de investigação cá do sítio. Uma estação de campo com três ou quatro edifícios baixinhos e muito húmidos, debaixo do arvoredo. Ao chegar lá perguntei de novo a uma argentina hippie se sabia da Annie. Não sabia, não tinha o número e informou-me que ela já não morava aqui. Onde está então?, perguntei-lhe. Em casa de um guarda do parque. Ora bem… não perde tempo! E eu ali especada, o Juamilson também, sem decidirmos o que fazer, até que ele sugeriu irmos almoçar para fazer tempo. Nessa altura é que percebi onde estava. A cinco minutos a pé, seguindo na direcção das cataratas, ergue-se, imenso, o Sheraton. Não entendo que raio de esquema permitiu construir assim um hotel dentro do parque. O Juamilson diz que na época da ditadura um endinheirado amigo do governo conseguiu comprar o terreno ao exército. Agora o conspícuo hotel vira-se para a mais impressionante queda destas cataratas, a garganta del diablo, e os seus hóspedes tomam banho na piscina e bebericam cocktails olhando para ela. Um pouco mais adiante fica a zona dos restaurantes e começam os percursos pedestres para visitar as cataratas. Foi num desses restaurantes que almoçámos, um self-service apetitoso em que desde logo me dei conta que evitar a carne vai ser algo complicado. Era buffett (bifê para os brasileiros, com ‘i’, sabiam?) Na zona central da sala tinham várias saladas e acompanhamentos. Numa mesa lateral os doces e a fruta. E ao fundo, atrás de um balcão, um che assava os nacos de bicho. O juamilson soltou um “cê tem qui provar essa carne argentina qui é uma delícia”. E, tendo ficado receosa que se ofendesse caso eu rejeitasse (já que a sugestão de restaurante fora sua), lá fui eu, engolindo em seco, implorar ao che que me desse um pedaço de lo más pequeñito… [posso imaginar as gargalhadas desse lado] Enfim. Ele achou que estava óptima, eu, desabituada e não-apreciadora, achei comestível. Eles fazem aqui um molho com ervas, meio picante, que se põe em cima e disfarça um bocado o sabor da carne.

Quando voltámos ao CIES, a Annie continuava sem aparecer. Daí que a argentina hippie me tenha dito qual seria a minha camarata e eu dei ordem de soltura ao Juamilson. Tirei as coisas das mochilas, fiz a cama, e fui a correr ver as cataratas. Está tudo muito perto. As cataratas deitam um constante ruído de fundo, como se estivéssemos na praia atrás das dunas. E chegar a um dos miradouros do caminho e, finalmente, vê-las é… poderoso! Difícil de descrever. Durante esse passeio senti-me dentro de um filme, como se fosse impossível que uma coisa assim realmente existisse. Além do mais, assim que começamos a ser envolvidos pela mata que rodeia os caminhos, somos assaltados por uma quantidade e diversidade de vida impressionante! Começa pelas borboletas de cores e padrões que não acabam, continua nas aves descaradas, de cantos muito diferentes daquilo a que estamos habituados, nos lagartos gordos que se colam às árvores, nas rapinas que nos passam quase em cima da cabeça e termina nos esfomeados coatis que percorrem o parque como rufias em busca de comida nos caixotes do lixo. Um deles, às tantas, decidiu que um bom sítio para farejar seria a minha mochila da máquina fotográfica. Escusado será dizer que corri para ele aos “não, não, nem pensar!” como se se tratasse de um cão.

Ao fim da tarde e de muita fotografia, voltei para cima onde, finalmente, encontrei as três americanas já juntas. À minha procura havia um bocado. E o que posso dizer delas? Os meus temores foram descansados. Passando as evidentes diferenças culturais – como as unhas dos pés pintadas de cores tão duvidosas que me é impossível adivinhar-lhes o nome – parecem-me bastante porreiras. As duas assistentes são um bocadinho mais novas que eu, têm 22 e 24 anos e, por dominarem mal o espanhol, ficam um pouco inseguras em situações em que têm que o fazer. Demo-nos bem, consegui dizer piadas de que se rissem e isso é o mais importante. Um entendimento humorístico! A Annie é mais velha, terá trinta e poucos e também é porreira, despachada e faladora. Quando me viram fizeram a cena americana dos abraços que me deixa um bocado constrangida, mas o mesmo já se tinha passado no Brasil - não me apanharam desprevenida.

Então, e como o namorado da Annie fazia anos e haveria um churrasco na casa deles, rumámos à cidade para comprar bedidas e extras. Eu e a Jen arriscámos uma lasanha de espinafres congelada.

No jantar foi aparecendo o pessoal do parque, o que deu muito jeito para os conhecer a todos logo no primeiro dia. Vários vivem aqui como casal (trabalhando ambos como guardas) e têm miúdos. A maioria é bastante mais velha que nós. Mas os argentinos são tão encantadores, simpáticos, brincalhões, que deixam qualquer um à vontade. Uns de traços índios, outros completamente europeus. Adoraram que fosse portuguesa e passaram o tempo a perguntar-me o que fazia tão longe de casa. Apareceu também um brasileiro que tinha vivido alguns anos em Cascais, gosta de fado e do Bairro Alto e considera a noite de Lisboa uma das melhores que já viu! [Incrível] Foi bom falar português ao fim de meio-dia a estrangeirar.

Reunimo-nos à volta da fogueira a ouvir um deles tocar viola e vários cantar músicas da região. Muito suaves, sentidas. À minha frente podia ver o cruzeiro do sul num céu completamente pintado de estrelas. A noite estava limpa e fria. E, descansada da ansiedade dos últimos tempos, suspirei esse alívio. Tem tudo para correr bem.

1 de setembro de 2008

segundo

Está frio em São Paulo. Frio! Uma pessoa pensa que vem para o Brasil encontrar a tropicalidade das nossas apetências e, ao chegar, nota que ninguém anda com o dedão no chinelo e a bunda quase de fora. De facto, estamos em época de usar a colecção Outono/Inverno e, embora nas noites frias a temperatura não chegue a baixar dos 14 ou 15ºC, começa tudo a tiritar e a enfiar blusões de penas. Tem a sua graça. Mas de qualquer maneira, para quem vem do Verão como eu, sente-se algum frio.
A cidade estende-se gigantesca por sessenta (sessenta!) quilómetros de comprida e, provavelmente, uma média de vinte andares de alta. Aproximamo-nos dela e logo sentimos essa massa cinza de betão a abrir espaço para se instalar na nossa relativamente organizada visão europeia. Assim, a primeira impressão não é grande coisa. Claro que a abertura de espírito do viajante tudo perdoa e a pessoa consegue interiorizar aquilo que vê quase sem crítica. Na verdade, como não escrevi a tempo e horas, tenho que fazer agora um exercício de memória a ver se não me esqueço de nada.
À chegada, segui com a Sofia de carro pela auto-estrada que nos levou do aeroporto à cidade propriamente dita. Seis faixas de rodagem para um lado, outras seis para o outro. Eram umas assassinas sete da manhã e o trânsito já não se mostrava simpático. De caminho ela foi tratando de actualizar-me sobre os últimos meses e, em simultâneo, tentar mostrar-me o São Paulo pelo qual íamos passando. Não existe propriamente uma lógica arquitectónica na cidade. Parece que os edifícios brotaram por geração espontânea, cada um de seu feitio e função. As ruas têm um aspecto sujo e grande parte das paredes estão grafitadas. Mas embora essa ideia inicial, o impacto, não tivesse impressionado pela positiva, gostei de estar lá. Gosto sempre de conhecer o desconhecido. A metrópole brutal que é São Paulo não é excepção. E, principalmente, fui muito bem recebida.
O que se sente lá é… hmmm…. Bem, é como se a pessoa que somos não interessasse muito. O ambiente tende mais para o individual do que para o social, como bem me sublinhou o João. O espaço não está pensado para ser vivido e usufruído, dá-nos sempre a sensação que estamos de passagem. Quanto mais depressa provavelmente melhor! Todos os prédios têm grades e seguranças, os restaurantes oferecem empregados para arrumar os carros e, ao parar num semáforo, convém lembrar-se de fechar os vidros. É meio estranho para a portuguesinha aqui. Não pude fotografar porque andar com a Priscila ao pescoço era estar “a pedi-las”. E, contas feitas, aproveita-se o tempo em restaurantes e bares. Talvez por não ser possível estar na rua.
A hierarquia social é ainda muito marcada no Brasil (ou pelo menos nas grandes cidades). Assim, é possível que uma pessoa vá a São Paulo sem ir à verdadeira São Paulo, aos reais noventa e sete por cento que se opõem àqueles opulentos três. Mas até esses três não me parecem adequados. Mansões enormes, grades electrificadas, medo de sair de casa e de estar em casa, comida e bebida em sítios muito bons – é verdade –, fins-de-semana nos arredores com longas filas de trânsito… E falta ainda o consumo descabido.
Mas que apostam nos restaurantes, lá isso é verdade. Fui levada a sítios óptimos: mexicano, japonês, italiano… Mesmo muito bons. E têm ainda o parque de Ibirapuera - onde passeámos a basset hound Pikolé -, que é enorme e faz lembrar um Central Park que não conheço, permitindo às pessoas usufruir de rua e de um pouco de verde dentro da cidade. Fundamental! Lá vemos o brasileiro a correr, de patins, passeando cães ou procurando museus (que os há dentro do espaço).
Portanto, quem pode, tem cultura para se banhar. Na véspera da minha partida fomos ao teatro. Era numa das universidades do estado, num sítio arejado e descontraído onde me senti muito bem. Wagner Moura na pele de “Hamlet”. Um animal de palco. Três hora e meia que valeram, e bem!, a pena. Eu não conhecia a peça – e tão pouco a história – e, talvez por isso, foi impressionante. Uma prestação fortíssima, cheia de dor e de fúria. Com toques de modernidade, como o facto dos actores se mudarem em cena e se sentarem lateralmente em cadeiras a ver os outros quando não era a sua vez, que sempre aprecio.
No geral, foi bom. Tinha saudades dos meus amigos e nada como ver a sua nova vida. Nada como ouvir a cantada propaganda política brasileira no rádio (“dona Teresa, se não soube fazer antes, não é agora que vai fazer!” Ou então, “o senhor Marcelo construiu a escola, os brasileiros que se lembrem…”). Autênticas comédias. Nada como, também, encarar o seu olhar esbugalhado com a nossa pronúncia e ouvi-los dizer “ai, qui bônitchinho!”, como se fôssemos uma cria de dois anos que aprendeu uma brincadeira nova. Ou um triste bicho de jardim zoológico. Enfim, a intenção não é má. Penso que, ao fim de uns meses, faria como a Sofia e encarnaria a brasileira em mim, só para não ter que ouvir constantemente os comentários votados às aves raras.
Despedi-me de São Paulo com pena de deixar a Sofia e o João tão cedo. Ao fim de três dias. Imaginando as condições em que viveria nos nove meses seguintes e perguntando-me se não poderia ter ficado um pouco mais a usufruir de uma cama de casal só para mim e um duche maravilhoso. De pequenos-almoços à descrição na padaria/pastelaria que já antes referi. E de internet a meu bel-prazer… Mas tinha que ir. E assim fui.
Obrigada aos dois tugas paulistanos pela estadia e companhia! (espero a única foto que tirámos juntos)