12 de fevereiro de 2009

vigésimo primeiro

É difícil encontrar o princípio desta história. Será talvez como mudar de casa e buscar nos cantos já vazios a essência que tinham quando habitados. Não se sente o mesmo.

Chegámos a Iguazú, três gringas e uma local, cedo em Setembro. Armadas pela ordem das moneras como as desconhecidas assistentes de Annie Green, personagem mal-amada (percebemos depois) pela mesma ordem, passámos uma iniciação menos simpática no centro de investigação. Forço-me a entender que seis meses não são uma vida, como agora parece. Os nossos dias no campo, o treino que recebemos, as relações com a hipotética responsável foram, para as quatro, alvo de questões e, muitas vezes, inquietações. E isso uniu-nos, ao longo dos meses, cimentando aquilo que agora é preciso segregar.

Mas voltando ao início. Depois de duas semanas argentinas, a Annie levou-nos a jantar à vila e anunciou-nos, numa frase nervosa, nada mais que a sua gravidez: you guys are gonna be aunts! E tomem lá disto, cuidado não se engasguem com a pizza. Desde aí, e para abreviar o conto que já revivi mentalmente vezes sem conta, iniciou-se a batalha do planeamento e das responsabilidades. Até que ponto será correcto alguém depender de terceiros, voluntários, para fazer o seu trabalho de doutoramento? Que ética, ou falta dela, teria motivado a rapariga a não avisar antes sobre a sua condição? Até que ponto, mais uma vez, seria normal deixar-nos o peso de um projecto em cima, ainda que tencionasse trabalhar no campo até ao oitavo mês? E que falta de maturidade a faria crer que tudo isto funcionaria? Enfim, dúvida foi variável que nunca faltou neste modelo. O que, volto a dizer, contribuiu para que nos fôssemos tornando, aos poucos, quatro mosqueteiros com nobres objectivos indefinidos.

Em termos de trabalho, a Annie foi alterando constantemente as regras depois do jogo começar. Aquilo que de início era fundamental, ponto assente na sua pesquisa, acabava por ser remediado com pouca precisão científica graças às dificuldades do campo. É preciso estaleca e bastante conhecimento para armar uma investigação de comportamento animal em estado natural. Principalmente com animais como macacos, que não sossegam, numa floresta como esta, que não facilita. E não é que não pudéssemos ser compreensivas, não é que não pudéssemos até, quiçá, ajudar a encontrar uma solução. O que sempre incomodou foi a atitude soberba de quem tenta deslizar por cima do mundo, de quem, como dizem por aqui, la tiene muy clara, e não precisa de ninguém para opinar. Depois a atitude foi extravasando para os detalhes práticos da convivência, os horários, os calendários, as contas e tudo se foi enrolando num bolo cada vez mais espesso de frustração e antipatia. No momento em que o desagrado foi assumido publicamente no centro, tudo cresceu exponencialmente, como era de esperar. Aliás, parece-me que, para ela, o facto de não viver com os demais investigadores foi o primeiro erro cometido. O segundo foi o autoritarismo para connosco, as tais pessoas de quem o projecto erradamente dependia. Em terceiro lugar – e isto não é culpa sua – estarão certamente as variações hormonais a que está sujeita.

Como se deu então o clímax, quererão os senhores leitores saber…

Certa tarde a Annie liga para o telemóvel da Tay e avisa-a. I’m out of the field. Com a mesma preparação e suavidade da noite em que anunciou a gravidez. O facto de perdermos um elemento implicava mudar todo o calendário, já que não poderíamos ter dias livres ao longo da semana e teríamos que o compensar com dias ao final do mês. Mas a verdade é que, não obstante as suas certezas de que estaria no campo até ao fim, já nós próprias sabíamos que a coisa se ia dar assim. Ninguém se importou por aí além, assumindo os tais cinco dias no fim de Fevereiro. Uns dias mais tarde, em reunião, ela decide atirar para o ar que achava que talvez não devêssemos ter direito a esses dias porque tínhamos perdido muitas vezes os macacos este mês e, nesses dias, só trabalháramos três ou quatro horas por dia à procura deles. Tudo, sempre, dito com alguma animosidade, como se nos estivéssemos a aproveitar dela – não se entende a que propósito gastaríamos o nosso dinheiro para vir de tão longe e o nosso tempo e energia para a ajudar se o que quiséssemos fosse não fazer nada. Parece-me bastante óbvio. Mas somos todos humanos, todos temos momentos para tudo e o mais importante para o bom funcionamento de qualquer empresa, é tratar das pessoas. Não digo levá-las ao colo, apenas respeitá-las. Sempre que a ouvia sublinhar com propriedade o termo projecto não podia evitar pensar que a criatura não fazia a mínima ideia de que o projecto era uma palavra que nos designava a nós, à gente que trabalhava nele.

Mas a tempestade veio depois. Já uma vez houvera gritos, uma vez que tentáramos entender o motivo de sair a determinada hora e não a outra, procedimento normal de todos quantos trabalham aqui com os mesmos animais. Gritos. Que era o seu projecto, que não tínhamos nada que andar a perguntar a terceiros o que pensavam. Noutros dias, por diferentes motivos, haveria de nos pedir que perguntássemos e pedíssemos informações aos tais terceiros. Sempre nós e nunca ela, porque a nossa função era qualquer coisa que lhe ocorresse no momento. Enfim…

Depois da reunião, e furiosas com a tentativa que a Annie havia feito de saltar por cima dos nossos dias de descanso – principalmente porque ela própria já não ia ao campo e, portanto, estava-se claramente nas tintas para o cansaço físico – a Tay e a Jen foram até ao território Silver ver, mais uma vez, se encontravam os animais. Era noite de jantar na vila para despedida da Vero, que ia de férias, e as duas optaram por regressar a casa meia hora mais cedo, de modo a não perderem o autocarro das oito. O último.

Parece então que a Annie ligou para cá à hora do jantar e, tendo-se dado conta que estávamos todos a jantar fora, juntou um neurónio com outro e entendeu que elas teriam que ter saído antes de escurecer para apanhar o autocarro. O que fez em seguida? Ligou para a Taylor, gritou e insultou-a. Não a deixou falar, disse assumidamente que não queria ouvir nada, só gritar. Muito descompensada a criatura… Por incrível que pareça (ainda hoje me parece incrível), seguiram-se quatro dias de total incomunicação. Não atendia telefones, fugia de casa quando sabia que íamos lá, era como se tivesse deixado de existir. Deixávamos-lhe recados no telemóvel, notas na mesa da cozinha, pedíamos ao namorado que falasse com ela. Terminou por escrever-nos uma carta e pediu ao mesmo que a entregasse. O conteúdo passava por que não podia confiar em nós, que éramos os pilares do SEU projecto (maiúsculas da própria) e que isso a desesperava. Que não sabia o que fazer, estava muito mal, não nos conseguia encarar e que agora queria um pedido de desculpas de todas. Elas, por terem “abandonado” o campo irresponsavelmente; eu e a Mica por não lhe termos telefonado a contar essa falta das nossas colegas. Nessa tarde, em pé no laboratório, asquerosamente transpirada depois de regressar da floresta quase em passo de corrida, a cada frase que lia dessa folha vincada em quatro, o queixo caía-me mais e mais. A Jen ia mudando de cor e, a um terço da página, atirou-a para o chão, murmurou com raiva fuck this! e saiu com chispas nos olhos.

Nessa noite, avisada a visita via namorado, fomos à sua casa. Tinha saído. Esperámos uma hora e meia, fazendo conversa de circunstância com ele, metido na coisa por força das circunstâncias. Disse que não fazia ideia por onde andava a Annie. Às onze e meia decidimos que era demais. Saímos e, no momento em que a porta se fechou, ficou decidido que não trabalhávamos mais para aquela pessoa evidentemente lunática. Toda a paciência tem limites. Ainda dissemos ao rapaz que voltaríamos no dia seguinte de manhã mas ele depois ligou para o cies a avisar-nos, na manhã seguinte, que não fôssemos porque, mais uma vez, ela não estaria. Decisão certa, portanto. Tarde demais quando, ao fim desse dia, depois de receber os nossos e-mails de desistência do seu precioso projecto, nos pediu um encontro em território neutro para lacrimejar e implorar uma oportunidade. Várias oportunidades foi o que recebeu ao longo dos últimos seis meses, sem nunca lhes ter dado qualquer valor, tratando-nos sempre como instrumentos em vez de pessoas. Ter gente a seu cargo a trabalhar numa floresta um dia inteiro implica preocupação. Nunca vi um responsável que se estivesse de tal modo nas tintas que virasse incomunicável por quatro dias. E se tivesse acontecido alguma coisa a uma de nós? Se precisássemos de ajuda? Para mim tudo isto é básico. Para quem vive fechado nas suas próprias paredes e não vê mais que o seu gigante umbigo, talvez seja uma grande viagem deitar uma mirada para quem está lá fora. De qualquer modo, no que nos diz respeito, chegámos ao fim da linha com a Annie. Game over.

Soluções apresentaram-se entretanto e passam por ajudar o outro grupo de pessoas que estuda macacos aqui no parque. A Mica ir-se-ia embora dia quinze de qualquer maneira, pelo que os seus planos não se alteram. A Jen fica até ao fim do mês (também como previsto) colaborando no projecto da Clara. A Taylor passou oficialmente a ser assistente da Clara até Agosto. E como não há mais que esses dois lugares este mês, a je vai dar uma volta pela região durante uns dias, receber a irmã durante outros dias, conhecer Buenos Aires e, depois, voltar em Março, ficando com o espaço que fica quando a Jen partir.

É tudo estranho, tudo abrupto. São pessoas que vivem comigo, com quem partilho tudo há um tempo talvez curto mas que se sente velho. É uma dor fininha que se instalou. Um vazio redondo que se sente frio, aquela certeza de que o que foi não volta a ser.

11 de fevereiro de 2009

[novo comentário quase nada]

Mudanças, mudanças...

A chispa electrizante do mundo que salta e avança (porque o universo está sempre em nós) anda por aqui no ar.

Depois já cá volto para contar os altos e baixos.