18 de novembro de 2008

décimo terceiro

Bom. Parece que começo a ter pouco que contar. Uma vez por semana e já nem sempre é fácil. O último dia livre ocupei-o a recuperar de uma crise vomito-cagalítica que me deu inesperadamente (alguma vez será esperada?). De qualquer modo, passou veloz – e conseguiu tomar a tarde e o dia livre que tinha, madrasta! Agora estou bem, recuperadinha, e há-que comer muitos chocolates para compensar.

A semana passada mudámos de monos. Demos por terminada a recolha de dados do grupo Macuco e partimos para o Gundolf, no extremo sul do “nosso” território. A distância e localização permitem agora apanhar o autocarro à hora de almoço e descer na entrada do parque. Fantástico. O grupo é bem mais pequeno que o anterior - apenas seis adultos para estudar - e é também imensamente pachorrento. Inacreditavelmente pachorrento! Num dia inteiro chegam a percorrer uns esgotantes oitocentos metros. Tadinhos… Ele há vidas difícieis. Comer, dormir e coçar-se é, literalmente e sem ironia, o que os animais fazem todo o dia.

E me gusta a nova área. Perdemos um pouco a eloquência dos nomes dos antigos trilhos, tais como Vino, Trago, Ron e Quilmes, Chicha e Grappa (tudo marcas de cerveja) e estamos, no momento, a habituar-nos às designações guaranis escolhidas para este espaço. Yacaratiá. Pecarí. Camoatí. Kuarai. Ibirá Pitá… [sorrisinho de ladecos] Imagine-se a incongruência de estar no meio da selva argentina, sem almita que entenda e partilhe, por junto, de idioma e cultura lusa e, a cada vez que se olha o mapa dos trilhos, baixar dos céus a imagem loura e toda-ela-dentes da Bibá Pitta! O que me rio sozinha. Eu e as árvores.

Existe ainda uma zona inexplorada por nós, lar do grupo de monos que se segue, a que alguns investigadores mais lamechas decidiram aplicar uma terminologia romancista. Pois temos Amor. Pois temos Infamia. Temos Sueño. Temos Descanso. E, para surpresa de meus esbugalhados olhos, temos também Rabo! Sim, é verdade. Rabo! Enfim, não fica muito longe de Ducto… Ainda assim mais no enfiamento de Canaleta. O que faz sentido, sim senhor.

E para não falar do clima nem das costas doridas, é com prazer que anuncio que gozo de novo dia livre e (let us hope) o tenciono passar longe de enfermidades. Talvez fazer o passeio “Gran Aventura” que leva os turistas de barco a passear no rio [calma, calma, calma! A juzante das quedas, evidente]. Talvez comprar mangas a setenta cêntimos, se as encontrar. Talvez passar a tarde na cama de rede a ler. Voltar a comer dulce de leche! Enfim, diz que o mundo está já aqui ao virar da esquina. ;)



6 de novembro de 2008

décimo segundo

Tendo em conta a data no calendário, começo por: PARABÉNS À AVÓ ALINE!! Tenho pena que as minhas aventuras obriguem à distância e ausência neste dia. Todas as moedas têm dois lados, não é? (aqui fica mais um beijinho especial desta neta)

Verifico, algo aborrecida, que tenho uma grande tendência para recorrer a descrições climatéricas nestes relatos. É por isso que hoje tentarei evitar temperaturas, céus, cores e demais apreciativos! Promessa.

Também sei que demorei a regressar ao blog, facto pelo qual me desculpo aos mais assíduos.

Cá se passou o trinta e um de Outubro, dia de bruxas, em que pela primeira vez me mascarei. Não só o mundo está americanizado como partilho espaço diário com quatro americanas para quem a data não poderia passar em branco. E, por me encontrar num lugar onde não é politicamente correcto chamar-lhes “americanas”, vou-me permitir roubar a Maria Rueff na sua hilariante caricatura norte-americana e, de agora em diante, adoptarei a generalização “amazing” para facilitar.

Preparámos a festa no quincho – que é como quem diz alpendre com assador –, o que passou por enfeitar o espaço com os adereços possíveis (desenhos de bruxas e morcegos feitos à mão, sacos de lixo cheios de ar a fazer de cabeças de abóbora…). As amazing mergulhavam fruta em vodka havia dois dias para nos dar a provar uma bebida interessante, muito alcoólica, servida com uma concha de um grande panelão. A omnipresente carne lá estava, a assar. Os bróculos, as beringelas e os pimentos também. Cada um foi aparecendo com o seu disfarce e já me tinha esquecido como é divertido ver as pessoas assim, com uma casca diferente da habitual. Entre aliens, vampiras, piratas e diabinhas, podiam pescar-se ainda personagens mais específicas como Pocahontas ou Audrey Hepburn. Valente misturada. Muito regabofe. Um dos pontos altos da noite foi caminhar até ao Sheraton e ir pedir o tradicional “trick or treat” a um embasbacado recepcionista argentino, que não fazia a mínima ideia do que eu estava a falar. Estendeu-me um limão e duas laranjas que tinha debaixo do balcão (por que motivo os tinha ali, não quis perguntar). Teve depois que ligar ao seu superior, que, por sua vez, ligou ao seu superior para que autorizasse o pessoal do bar a oferecer-nos uma caipirinha. Uma para dez, mas foi melhor que nada. Voltámos alegremente pela escuridão da estrada até ao CIES, rindo, mascarados, sob um céu ponteado de estrelas e desenhando com as lanternas rastos meio caóticos de luz no caminho. O resto da noite passámo-la ao som de cumbias e chamamés, dançando, ainda e sempre, no quincho.

Entretanto fui ao Paraguai. Uma tarde de calor insuportável em que a floresta me rejeitava e decidi aceitar a proposta dos equatorianos para ir com eles até Foz do Iguaçu, no papel de tradutora. Aconteceu que perdemos a camioneta suposta. Aconteceu que aquela que acabámos por tomar, concluindo ser adequada, passou velozmente pela estrada que ladeia a cidade brasileira e seguiu, sem ai nem ui, em direcção à ponte que une o Brasil e o Paraguai. Na fronteira tentámos explicar ao condutor que a nossa intenção era ficar em Foz e que queríamos sair. Nada feito, estava proibido de deixar sair alguém antes de Ciudad del Este. E foi assim que dei comigo caída na maior feira do mundo.

Para quem chega de Puerto Iguazu, uma pacata vila em que a siesta é rainha e o mais agitado que se vê é a fila de três pessoas para pagar no supermercado, um lugar onde se respira normalmente e se caminha normalmente, Ciudad del Este tem o impacto de um murro no estômago. Saltámos do autocarro no cruzamento de duas largas e movimentadas avenidas. Assim que pisámos o asfalto, uma baforada de escape viajou-me narinas acima e obrigou-me a olhar em volta. Os carros aceleravam ignorando os peões. Dos lados, as ruas enchiam-se daquelas lojas que parecem ter um pouco de tudo, de barracas apressadas como as que se montam nas feiras, de gente com carrinhos cheios de fruta, de refrigerantes e de amendoins. A maior parte tentava impingir-me conjuntos de meias e perfumes baratos. Perseguiam-nos pela rua, qual marroquinos. E a que som? Reggaetón, obviamente! A batida mais irritante do mundo em cada canto, em cada banca de tecnologias, filmes ou roupa. O pesadelo. Um universo de quinquilharia em que, para além do calor infernal, da poluição e do assédio comercial, temos que levar com o reggaetón. Duas coisas trouxe de bom do Paraguai, apesar de tudo. A primeira foi um pacote de yerba paraguaya que, além de erva mate, tem também menta. Óptima. A segunda foi um boné que muito jeito me tem dado – não tanto para o sol como para proteger os olhos da chuva.

Houve tempos em que o Paraguai era um dos países mais desenvolvidos da América do Sul. Quem o vê agora, à falta de graça de Ciudad del Este e aos mestiços tentando, a custo, trocar pacotes de amendoim por tuta e meia, tem alguma dificuldade em acreditar. Os espanhóis usaram o território para lançar as suas piedosas conquistas e isso fez com que o desenvolvimento fosse uma realidade até ao século dezanove. Eram um moderno país industrializado, à época. No entanto, por motivos que uns explicam assim e outros assado (consoante a nacionalidade), viram-se envolvidos num conflito de grandes proporções em que o Paraguai se opôs ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai, ao mesmo tempo. Estes últimos formaram o que ficou conhecido como a “Tripla Aliança” e o resultado foi arrasarem com noventa por cento dos homens paraguaios. Noventa por cento! Acho que hoje em dia ainda não conseguiram reequilibrar a proporção. Li que, na altura, encorajaram os homens que sobraram a terem várias mulheres, para compensar. Mesmo assim ainda não está por igual. Para além disso, o país ficou destruído e a recuperação talvez não venha a ser completa. Não sei, já passaram mais de cem anos…

Na volta, passando pelo Brasil, aproveitei para trazer café. Entrar e sair, bom dia, obrigada moça. E, já em Puerto Iguazu, surpreendi-me com a sensação de casa. Desci do autocarro, respirei fundo e reconheci o ar. Almocei em sítio familiar e sorri à empregada do costume. Não falei a minha língua, mas foi como se fosse.

Deixo-vos mais dois vizinhos: