19 de dezembro de 2008

décimo sexto

O natal está à porta. Sem me aperceber, o tempo foi chegando de compras, trânsito e senhores gordos vestidos de vermelho. Mas, felizmente, onde estou não se sente o tal espírito. O calor é de Verão, os hábitos mantêm-se de floresta e de rio e a única pista que surge de algum acontecimento importante é a ausência de cada vez mais elementos cá em casa. Cozinhar para seis e não para onze faz alguma diferença. E, ao ritmo de um ou dois por dia, em breve seremos só as quatro. As últimas a partir.

Confesso que desde há muito não aprecio a época. A obrigatoriedade ainda mais acentuada que o verbo “comprar” assume durante o mês de Dezembro irrita-me. Este ano, no entanto, chegarei de longe. Não acredito em Deus mas levo uma imensa vontade de casa, de família e de ouvir falar português. Assumidamente sem dinheiro para presentes – uma que outra graça, pelo prazer de levar algo de um país diferente – sinto-me também liberta da parte feia da questão. Posso estar aqui tranquila, dedicar-me ao costume e fazer de conta que o mundo lá fora, por enquanto, não existe. Aproveito para perseguir macacos às seis da manhã, para nadar no rio quando há tempo e para ver o céu nocturno a que ainda não me habituei.

Daqui até casa demorarei mais de vinte e quatro horas. Uma boa parte delas serão passadas no aeroporto de São Paulo, esperando. Uma senhora seca. Por uma boa causa. :)

9 de dezembro de 2008

décimo quinto

Às vezes dão-me uns cheliques, umas fraquezas súbitas, cuja visita nunca é agradável. Isto desde que cheguei aqui. Começa por que me sinto certa manhã especialmente cansada, ou o calor da tarde me dilata as ideias, não sei. Os joelhos desatam a doer, os músculos viram gelatina, arrasto-me trilho acima, trilho abaixo com ganas de sentar-me a cada dois minutos, bebo toda a água que carrego numa só hora e, ao voltar a casa, queixam-se as têmporas. Momentos depois o estômago. E temos a festa armada para os dois dias seguintes.

Com pontaria certeira, tenho conseguido que a coisa se dê num dos dias livres a que tenho direito. Isto de trabalhar por turnos e obrigar a que outro nos substitua em caso de ausência é um stress acrescido ao problema em si. Passar mal uma manhã pode ter como consequência que uma das outras perda a folga e tenha que trabalhar nove dias seguidos. Assim, faz-se tudo o que se pode para levantar o rabinho e pôr as pernas a mexer. É que nove dias custam, principalmente agora que mudámos outra vez de grupo de estudo e estes animais têm território a três quilómetros daqui. Pensar-se-á que três quilómetros não é assim tanto, que umas corridas domingueiras em Monsanto rematam lindamente a questão e sem qualquer drama. Pois será. Informo que começar o dia às cinco e meia da manhã, ainda noite escura, palmilhando esses malditos quilómetros na selva com as galochas não tem a mesma piada. Principalmente porque, ao chegar, há então que começar a seguir-se os animais. Ou seja, o dia vai começar ali, três quartos de hora depois. E, claro, a ideia de o terminar no pico dos 35 graus mais húmidos que conheci e ter que suar todo esse caminho de volta é exasperante.

O lado bom deste novo lugar (com alívio continuam a encontrar-se lados bons) é o salto Arrechea, que se encontra no final do caminho. Um salto bem pequeno tendo em conta a dimensão das águas que caem por aqui mas, por isso mesmo, mais acessível. Uma plataforma de madeira montada na parte superior permite-nos atravessar o riacho mesmo onde a água perde o chão. Encostados ao varandim vemos, num enquadramento de fotografia, a água que cai lá em baixo, as copas verdes que a rodeiam, ao fundo uma língua castanha de rio e, ainda mais além, de novo o verde brasileiro. Palmeiras altas a meio caminho ajudam a organizar espacialmente as ideias. É um postal vivo, tanto como a primeira visão do conjunto das imensas cataratas ou da garganta del diablo. Aqui, no entanto, temos o extra de, lá em baixo, se formar uma piscina natural. E a sensação de entrar nessa água fria (bem mais fria que no rio) e se ficar envolto em vegetação, de olhar extasiado a água que tropeça lá do alto e se precipita, as rochas negras em que ela bate cá em baixo, de sentir um vento morno na pele, essa sensação, é especial. Quem não desejou estar, por uns momentos, dentro de um anúncio da "Fa" ou da "Timotei"? Aqui está a oportunidade. Confirma-se, bastante agradável!

Portanto, para minimizar o frete dos seis quilómetros diários (extra aos percorridos realmente a trabalhar), tenho que será uma boa ideia passar a levar umas sandochas e, ora ficar depois da labuta, ora ir mais cedo e mandar umas mergulhaças antes de começar. Só para animar a malta. Amanhã tratarei de pôr o plano em prática.

Para o dia sete, esse especial pelo qual recebi alguns simpáticos comentários no último post (que agradeço), havia planos de grande festaça. Três despedidas a somarem-se aos vinte e sete da je. Concordou-se em organizar o asado para a noite de seis. Na tarde desse dia, quem pudesse iria passear a um antigo parque de campismo que há dentro do Parque e onde, aparentemente, também se tomam boas e pouco turísticas banhocas – como se observa, o calor aperta com força e nada tem mais importância do que o acesso à água.

Infelizmente esse dia passei-o na cama. Um dos tais. Dormi toda a tarde, na esperança de exorcizar os demónios virais. Pela noite o ar agitava-se no vaivém de gente entre a cozinha e o telheiro, trazendo e levando, preparando, ocupando-se. Consegui ir e comer um pouco do cuscuz vegetariano cozinhado para evitar a carne da ocasião. Depois, obedecendo a novo queixume estomacal, regressei à cama. Ouvi-os rir e conversar lá fora, enrolei-me, dediquei-me por momentos a Saramago, pu-lo de lado, fixei por baixo as traves de madeira, o colchão da Mica – abóbada nocturna – empurrei-o com os pés para passar o tempo enquanto a pança me ameaçava “pára quieta!”. E nisto estava quando, apanhando-me desprevenida, um exército de sorridentes regalos se me apresentou enfilado no quarto (o tal de dois por três). Não me surpreendem as pessoas muitas vezes mas esta foi uma delas.

O cumpleaños propriamente dito, ou seja, o dia seguinte, já teve direito a praia – que o físico andava melhor. Apepú, que os mais atentos já conhecerão. Tosta de um lado, tosta do outro, mergulha daqui, nada para ali e dá de comer às "bariuis", tadinhas, que umas picadelas não fazem mal a ninguém e se te dão comichões de morte durante uma semana, olha, azar, é o que temos!

À noite, havia ainda que soprar a vela deixada por acender na noite anterior. Todos concordaram em preparar comida e fazer piquenique em Arrechea – sim, a loucura dos três quilómetros para cá e para lá! Fascinar-se com a natureza é assim, causa delírios colectivos que resultam em carregar bolos, garrafas de vinho, saladas, pão, carne, sendero Macuco abaixo. As moneras do turno da tarde aguardavam no salto, impacientes, descrentes na nossa mobilização e geladas com a espera depois de um banho quase nocturno. Nunca o pão com chouriço lhes soube tão bem. A lua estava pela metade. Meia lua iluminando onze bocas cansadas, esfomeadas, divertidas, partilhando o vinho, gritando pela maionese… Até que por fim se cantou, em português (!), quatro versos de “parabéns a você” – um esforço que muito apreciei – e se atacou, alarvemente, uma tal de chocotorta. Quando digo atacar, quero dizer mãos cheias de chocolate e dulce de leche, uma ronda, duas rondas, três... Para ganhar energias para o caminho, o infindável caminho de volta.

3 de dezembro de 2008

décimo quarto

Dia de Acção de Graças. Mais um primeiro. Na quarta quinta-feira de Novembro celebra-se o dia em que colonos ingleses e indígenas norte-americanos partilharam comida - o que dificilmente terá acontecido, mas mantenha-se o cinismo necessário ao bom funcionamento do sistema. Resulta o dia num género de Natal sem prendas, em que a família se reúne para agradecer e comer. Não me parece mal.

Para as amazing trata-se de uma data importante e, por tal facto, decretou-se dia livre a tal quinta-feira. Mais, associando a festa ao facto de termos terminado as focais mais cedo que o previsto, foram-nos concedidos não um, mas uns muito desejados quatro dias livres! E assim nasceu a ideia de ir armar o estaminé noutra selva que não esta. À primeira vista parece, sem dúvida, estranho que tiremos férias da floresta na floresta do lado. É quase como sair de casa e tocar à campainha do vizinho da frente, ora com licença aqui estou, com certeza faça favor. E porque não? O espaço será mais ou menos familiar, os ângulos conhecidos, as simetrias automáticas, mas o recheio será diferente. A vista não se repetirá. E o que se fará em casa do vizinho, nalguns dias de férias, será aquilo que se faria na própria casa? Estou tentada a arriscar um “não”.

Não sei bem a quantos quilómetros fica o parque Urugua-í das cataratas. Seguramente não alcança os cem. Chega-se pela estrada que passa por Wanda e vai para Andresito e, à partida, estranha-se um pouco que a recepção do lugar, a própria casa dos guardaparques, esteja plantada logo à beira do asfalto, à mercê de camionetas e buzinões. Mas, assim que saímos e o veículo se vai, logo se entende que agitação não mora ali. A estrada estende-se num abandono de espaço aberto rasgado na selva. O calor aperta, só as cigarras bulem. Um rapaz novo que certamente goza a boa da sesta no alpendre, levanta-se para nos receber, indica o espaço para acampar e depressa se vai – talvez de volta ao merecido descanso. E então há uma pausa no ar. Entreolhamo-nos. Outro lugar. Há sempre uma pausa quando se chega e se largam os sacos, quando se olha em volta e se avalia a casa do vizinho. Este vizinho tem árvores um pouco mais altas que as nossas, menos entraves arbustivos, um belíssimo espaço de sombra para as tendas, um riacho logo em frente, muitas moscas mas não mosquitos e um silêncio igual ao nosso mas que, em casa, não conseguimos ouvir. Não é um camping, é um espaço na selva onde se pode sossegar. Dormir que nem sardinhas enlatadas dentro de uma tenda emprestada, se assim o desejarmos. Porque não? De facto, o quarto de dois por três no CIES tem essa inconveniência de ainda nos permitir respirar individualmente. Acampadas, nenhuma se pode mexer na tenda sem espetar um dedo no olho de alguém ou roubar cinco preciosos centímetros da esteira do lado. Mas não, não foi pelo incómodo que fomos. Fomos pelo prazer de sair – que o permanecer ameaçava provocar-me tiques nervosos – e, na verdade, o tempo não nos permitiu ir mais longe. Tudo aqui tem tal dimensão que deixar a selva para trás tardaria bem mais que o desejado. Mar para que te quero!, vejo-te a uns inquietos 600 quilómetros de distância. Uff… Formulo pensamentos reciclados sobre a santa terrinha. Que lindo e que fácil ser-se pequeno! Não há preto nem branco, bem sei, mas, além da escala cinza, as cores caem sempre bem.

Não sei se me encantou mais mergulhar na água fresca pela manhã ou hipnotizar-me com o fogo contra as silhuetas nocturnas das árvores. Pode ser que tenha preferido as borboletas às centenas que nos rodeavam à entrada da ribeira. Ou o som da floresta a entoar melodias noite fora. Estou por decidir.

Viajar é muito falar com as pessoas. Ter paciência, dar tempo para vir o que é possível que venha. Aceitar sem esperar e dar com essa mesma inocente surpresa. Senão, é um pouco como passar por cima flutuando. Quanto mais tempo estou aqui mais me apercebo do quanto tarda conhecer um local, do quanto é preciso entrar no ritmo, assumir os hábitos. Mas isto virá talvez a outro caso, não a este.

Certa noite, um dos guardaparques, Rolando de seu nome (contive a gargalhada amigo gandamaluko, contive mesmo uma enorme gargalhada), enfim, sabendo o senhor do nosso desejo de conseguir ver um tapir, fez-nos o jeitinho. Acontece que, na selva, toda a fauna se pela por um bom cloreto de sódio, recurso escasso e fisiologicamente importante. Assim, sabendo de um específico local onde passam, por vezes, tapires, basta deitar sal na terra ao entardecer e, nessa mesma noite, um dos mais caricatos animais que já vi passará para uma visita. Assim foi. Tomadas pela expectativa, guiadas pelo Roli, atravessámos a estrada e entrámos alguns metros no breu da selva cerrada. Ali estava. Iluminada pelo foco, uma fêmea lambia os beiços que ia molhando na lama. O focinho, uma probóscide com manias de grandeza, movia-se comicamente para cima e para baixo. Do tamanho de uma vaca, um curioso aspecto de algo que não logrou ser elefante e uma disposição tranquila, ali se deixou ficar, exibindo os movimentos lentos e despreocupados de quem está em casa. E nós calados, imóveis, respirando devagar para não fazer deslocar moléculas, como crianças que espreitam para onde não devem e se compenetram em gravar as imagens na memória. O animal quase não fazia ruído. Enorme e silencioso, olhava-nos de vez em quando e logo voltava a baixar o focinho para o solo. Insectos contestavam, sapos e rãs barafustavam, algumas formigas insistiam em morder-me, mas a tapir estava de actriz principal, as luzes apontavam-se-lhe e o público só não aplaudia porque não podia. Creio que o adjectivo "único" não podia ser melhor empregue para o momento.

Num dos outros dias, passeando pelo trilho dos tapires à luz do sol, demos, sem querer, por um som para o qual temos já tímpanos bem afinados: monitos saltando. Lá estavam. Foi interessante perceber o quão habituados os nossos grupos estão à moléstia de investigadores que não descolam. Muito antes que nos tentássemos aproximar, os animais tinham já passado a uma área mais interior e ficámos a ouvi-los chilrear à distância. Somos umas mimadas, de facto.

Quanto ao dia de acção de graças em si mesmo, foi tal qual como os outros. Ler, dormir, nadar, socializar q.b., aquecer água para o mate, gritar impropérios às moscas… Mas, à noite, o rastafari de serviço – única alma acampante além das nossas, criatura com relação muito própria com o calendário maia (!) – decidiu ser uma boa ideia fazer uma espécie de pão fininho, como o “nan” dos indianos. Uma excelente sugestão. Juntámo-nos no processo, simbolizando a tal partilha de comida entre indígenas e colonizadores - aposto que a nossa foi mais agradável. Amassámos, amassámos e amassámos. Sobre a fogueira grande havia uma pedra plana elevada que permitia espalhar as brasas por baixo. Assim fomos dispondo o pão e cozendo a massa que havíamos espalmado e salpicado de especiarias. [muy rico diria eu, mas isso era se me fosse armar em emigra catita]

Devidamente descontraídas, talvez até preenchidas, regressámos às cataratas um pouco a contragosto, à boleia de uns guardas conhecidos que tinham ido a uma reunião no Urugua-í. Sentei-me na caixa aberta da carrinha e, com selva dos dois lados, sob um sol subtropical que àquela hora já não ia forte, vi o pó da estrada 101 virar uma nuvem laranja que se arrastava atrás de nós. À nossa passagem borravam-se árvores, casas, submergiam-se pessoas, afogava-se o interminável verde. Acelerando. Foi assim que o guardei, um tremer de rodas na terra batida, um calor de luz nos braços e na cara, um entre cá e lá que não queria que terminasse e uma nuvem que tudo ia engolindo. Um filme tornando-se real.