14 de junho de 2009

à falta de escrita...

...aqui ficam uns "bídeos" acabadinhos de sair do forno!!





1 de maio de 2009

as minhas desculpas...

gente, nao consigo actualizar o blog ultimamente! Ando em viagem, de cá para lá, com muitas notinhas no caderno e muito boas intencoes, mas o acesso à net é para mandar meia duzia de mails e mais nada.

Fica a promessa de me dedicar à comunicacao assim que conseguir. Nao sei quando vai ser isso... Na pior das hipoteses dentro de um mês e meio deixo aqui tudo de uma vez! I'm sorry, mais uma vez.

Hoje estou por cruzar a fronteira para a Bolivia. A ideia é ir subindo e vivendo até chegar a Machu Pichu. A ver!

6 de abril de 2009

vigésimo sexto

Nao querendo saltar capítulos da história, vou entao terminar de contar Corrientes e os uivadores.

Da EBCo viajámos para a Isla del Cerrito, que nao é uma ilha mas sim uma península e fica já localizada do lado da província de El Chaco. Aí chegados, foi tratamento de luxo para quem faz trabalho de campo: hospedados com um casal que alugava quartos, situaçao muito comum por aqui, nao havia que arrumar nem que cozinhar. Ainda por cima a senhora Gallo vendia comida para fora! Assim, a cada madrugada serviam-nos o pequeno-almoço e entregavam-nos, prontas, as sanduíches para o campo. À noite, pelas nove, entrava o jantar, sempre gordo e bem-vindo.

A colaboraçao do senhor Gallo passava por transportar-nos, na sua caixa aberta, até ao rio todas as manhas – e de volta todas as tardes. Às seis e um quarto, ainda sem sol, lá se ouvia o rodar da igniçao e se apressava o calçar das botas e o preparar da mochila. Os dias já mais frescos pediam algum abrigo a quem se sentava na parte de trás da carrinha. De caminho apanhávamos sempre outro grupo de moneros que dormia noutro lugar mas trabalhava também na isla brasilera – essa sim, um verdadeira ilha, de cerca de trinta hectares.

Atingido o rio, faziamos entao deslizar a canoa pela rampa. A subida a bordo vinha sempre revestida de alguma ansiedade, principalmente por parte dos dois únicos machos presentes. Dificuldades de equilibrio, provocaçoes vindas de terra e material arruinado caso a embarcaçao decidisse virar-se. Nunca aconteceu. Remadores à frente e atrás, uma ou duas pessoas no centro (dependendo do peso dos presentes), mochilas soltas e botas semi descalçadas, just in case. A outra margem estava logo ali à frente, eram três minutos de percurso. Depois havia que voltar para buscar os restantes, cinco viagens no total, entre idas e vindas. Era quase um jogo. Quem vai agora? Nao, tu nao podes ir com X, tens que ir com Y. E enquanto isto durava, o sol começava a aparecer no horizonte, enfiando com precisao no continuar da linha do rio e anunciando sem vergonha o seu espectáculo de luz. Remando sentada ao nível da água castanha do rio, como que mergulhada nela sem me molhar, sentindo passar a corrente enquanto obedecia às ordens da Romi “derecha, izquierda, ahora clava a la derecha…”, vendo a margem lodosa do outro lado aproximar-se, o canavial verde fresco que nos recebia na subida e as cores do céu que, sem pressa, se iam revelando e dando lugar umas às outras, substituindo sem ciúmes os reflexos violeta pelos rosa e estes depois pelos laranja, numa entrega tal de luz que só as nuvens fôfas deste lugar sabem receber, absorvendo eu todos esses detalhes com olhos ainda sonolentos, só restava encolher os ombros e render-me à evidência: sou um fragmento ínfimo de uma riqueza incompreensivel; e agradeço todos os dias o facto de sentir espanto.

O trabalho na ilha era igual ao que antes tínhamos feito na EBCo e, para além de ter andado a ibuprofeno alguns dias para aguentar a contractura muscular no pescoço, tudo correu sem novidades de maior. A Andrea deixava-se dormir e ressonar durante a sesta dos macacos, o Marcelo nao se calava e nao dava um minuto de sossego, os bichos mantinham a habilidade de desaparecer silenciosamente muitas vezes, dado que se mexiam tao pouco e tao devagar que acabávamos a olhar para o lado e a pensar na morte da bezerra (é que movimentos destes a quinze metros de altura, no meio da folhagem das copas, tornam a coisa realmente complicada).

A povoaçao, Isla del Cerrito, é uma das várias que, nos anos cinquenta, servia de cativeiro a leprosos. Passeando à noite, depois de jantar, em busca de cartoes para telefonar ou guloseimas para aconchegar a alma, encontravam-se esses edificios coloniais erigidos pelos ingleses, que antes haviam sido dormitórios, clínicas, áreas de convívio e também aquilo que agora, sem dúvida com boa intençao, foi convertido em biblioteca: o crematório. De fora, através das janelas, observam-se ainda os espaços dedicados aos caixoes, em género de prateleiras na parede. Por muitos livros que o preencham, a atmosfera neste lugar sente-se pesada.

Em toda a zona antiga vêem-se também pequenos carris que cortam a continuidade das ruas arenosas. Percebe-se que serviriam um comboiozinho do estilo daquele que une a Costa da Caparica à Fonte da Telha e suponho que a sua utilidade estivesse relacionada com a época do leprosário. Agora nao está activo.

Mas, apesar do peso destas memórias, nao se imagine que o lugar é lúgubre. Como é costume, depois da sesta, o comércio reabre entre as cinco e as dez. Como é costume, nestas terriolas, o reggaeton é rei e a batida faz-se sentir em cada esquina. Deambulam grupos de adolescentes, jovens maes com jovens crias, rapazes com os cabelos escuros puxados a gel para um dos lados, por cima dos olhos. Sentam-se à porta das casas comadres tomando tereré. Tudo está vivo, soa, passeia de bicicleta! É uma sensaçao agradável que nos chega.

23 de março de 2009

vigésimo quinto

Logo que o despertador recomeça a tocar às cinco e meia da manhẵ, torna-se difícil controlar a exclamaçẵo “ó meu deus, porquê?”, ainda que nẵo se acredite, à partida, numa entidade divina responsável pela existência própria. Apetece até ir na onda, montar-se a cavalo na fé, só para poder questionar-se assim. Ó amigo, porque me destinas tal sorte?? E entẵo faz-se luz e ocorre-nos onde está a verdadeira responsabilidade. Com alguma vergonha, calamos o bico – que nunca chegou a ser aberto porque o cérebro a essas horas é uma pasta mal definida que se limita a fazer funcionar os mecanismos mais básicos. A sobrevivência da casa-de-banho e de ruminar uma torrada empurrada esófago abaixo com chá. Lá fora a noite, ainda escura, e todos os cri-cri e croac-croac que a acompanham, nẵo se pode dizer que chamem por nós...

Trabalho de campo nẵo é passeio. É um privilégio sim, mas a verdade é que muitas vezes se paga com o corpo. A constância de dias e dias seguidos a trabalhar doze horas sem parar, ainda que com animais que se mexem pouco, pode dar-nos cabo do miolo. Compensa-se com esse acesso a lugares incríveis e ao vislumbre de vidas bem diferentes das nossas – falo dos monitos.

Na EBCo, em Corrientes, de onde agora escrevo, macacos-uivadores é coisa que nẵo falta. A cada dia estudamos um grupo diferente e a técnica passa por seguir um indivíduo ao longo das horas solares para registar o que ele faz. Tudo o que ele faz. Nẵo podemos perdê-lo de vista, a nẵo ser que precisemos de parar para comer ou “ir à casa-de-banho”. A Romina estuda relaçỡes de conflicto entre as progenitoras e as crias, pelo que nos concentramos a juntar dados comportamentais destes indivíduos. Alguém segue a cria, alguém segue a mẵe, e outras duas pessoas fazem o mesmo com outros dois animais. É interessante, a floresta é muito diferente da mata atlântica de Iguazu e o facto de haver muito pastoreio de vacas, acrescenta à curiosidade da situaçẵo. As zonas em que encontramos macacos sẵo fragmentos, ilhas verdes, no meio da pastagem. Sabe-se que os bichos podem atravessar de umas para as outras caminhando pelo solo, mas dizem é acontecimento raro.

Os homens que guardam as vacas e as juntam ao fim do dia, para as chamar e para se comunicarem entre si, soltam gritinhos agudos - uuuooo - que, à primeira vez ouvidos, parecem de brincadeira. Os investigadores adoptaram o grito, nẵo sei se para se por agregaçao cultural, se porque os acharam divertidos. E eu sinto-me um pouco ridícula trocando os sonoros op! de monero do cies pelos mais tontos uooo de monero da ebco.

O que acontece aqui e que gosto de ver é que há mais gente, com projectos de distintos temas, a trabalhar com os uivadores, do que encontrava em Iguazu. E há quem viva realmente na estaçẵo, dando um toque familiar ao lugar.

Como já os olhos vẵo fechando, acho que deixo mais dizeres para depois.

Aqui ficam umas poucas fotos. E o nome do cẵo negro é... Negro! Como nẵo haviamos de ficar amigos se lhe encontrei logo a graça??





11 de março de 2009

vigesimo quarto

Bem curta esta ausencia, a minha nova boss tem computador e internet. O problema eh que o teclado nao tem acentos (ou te-los-a em lugares insondaveis). Tomei a liberdade de esticar a corda ao nosso belo portugues, por isso peço desculpa mas creio que facilita a leitura. Quando tiver oportunidade tratarei de o corrigir.

Saimos da estrada principal logo a seguir à placa que diz San Cayetano e percorremos de carro as ruas de terra batida, quase de areia, a que ja me vou habituando.

Depois de uma extensa linha recta, na qual nos vamos cruzando com casas espaçadas a pequenos terrenos mais ou menos cultivados, chegamos ao portao da estaçao biologica. “Cuidado com o cao!”, “Atençao: cao perigoso!”, le-se em duas ou tres placas. Sabemos que nao esta ninguem, o que nos deixa um pouco em sobressalto. Apenas ate que se aproxima o cao. Um rotweiller de cauda a abanar e lingua de fora. Feliz da vida por ver alguem, recebe-nos com saltinhos amigaveis e turras nas pernas para ganhar direito a mimos. Aliviados, entramos no espaço comum a cinco pequenos edificios que se dispoem, mais coisa menos coisa, circularmente. Nao se lhe pode chamar jardim, nem sequer patio. Uma area com arvores que da sombra as casas? Serve.

Quando se vem do caotico CIES, chegar aqui deixa qualquer um impressionado. O espaço nao eh grande mas cada divisao eh mais ampla, tem muito menos tralha espalhada e, principalmente, eh bem mais limpo. Da gosto escolher uma cama e desarmar a mochila, da gosto entrar na minuscula cozinha e preparar um cha, pelo simples facto de que esta arrumada e podia ser a cozinha de uma casa minha – ou de qualquer pessoa com poucas pretensoes culinarias.

Lanchamos enquanto o Mario, o investigador que me deu boleia, me mostra algumas fotografias que as camaras-trampa (nao me ocorre o nome em portugues) tiraram aos mamiferos dos esteros e me explica os resultados que ate agora conseguiram.

Saio depois para o entardecer, na esperanca de ouvir cantar os carayas. Levo o livro, sento-me num gigante tronco caido, de frente para o sol que se vai. Nuvens baixas e fofas pairam no horizonte, o astro rapidamente se esconde para começar depois a estender, um a um, os seus raios atraves delas. Forma uma tela de luz derramada, como se decantada, sobre o matagal e as ocasionais palmeiras. Olho. Espero. Vejo. Lentamente o azul das nuvens e o branco da luz vao-se transfigurando num quadro de cores vivas. Os rosas, os laranjas outra vez! Olho. De vez em quando decido ler, mas logo me foge a mirada de novo para o ceu. Eh incrivel.

O cao negro, cujo nome ainda nao sei, aproxima-se e desata a escarafunchar entre o tronco em que estou sentada e o solo; nao entendo o que busca, algo da maior importancia sera. Depois fica por ali porque, ja percebi, gosta de mim. E eh entao, quando a luz ja esmorece e comeco a pensar que nao da mais para esforcar os olhos na letra minima do livro de bolso, que os começo a ouvir. Um som aspero, rouco, que vai em crescendo e da a sensacao que vem de la uma tempestade. Eh um “uuuhhhhh” que soa a vento forte, a furacoes, a arvores balaceando em turbilhao. So que acontece que nada disso acontece, a paisagem mantem-se mansa e o som ondula sem consequencias.

Devagar, aproximo-me da zona de onde vem o ruido. O cao negro segue-me. Cem metros adiante sou limitada por uma cerca e um arame e percebo que os animais estao perto. Agacho-me nesse suave fim de tarde e fico a ouvir os uivadores uivar.

(quando chegamos pela primeira vez a um local, ou quando acabamos de conhecer uma pessoa, tudo o que eh bom parece fantastico e tudo o que eh mau parece insuportavel; suponho que seja um mecanismo eficiente para tomar decisoes rapidas, se estas se mostrarem necessarias)

Ao voltar a subir a ladeira em direccao ah casa noto, ah minha esquerda, que a lua ja subiu. Ergue-se um pouco acima do horizonte, cheia, redondissima e algo amarelada. Afasto-me das arvores para a contemplar. Olho por cima do ombro na direccao de onde vim e encontro ainda o ceu colorido. Por momentos nao sei o que fazer. Como eh que se escolhe entre o sol e a lua? Estou parada a meio caminho, indecisa. A lua atrai-me, estah linda, mas eu costumo ver o por-do-sol ate ao fim (pode qualquer outra pessoa entender que estes sao dilemas infimos nas preocupaçoes diarias de cada um e, enfim, talvez a longo prazo sejam, mas no momento em questao, que eh o que sempre e mais importa, eu estava sem escolha nem decisao – como o poeta). Olho para tras, olho para a frente, olho para tras de novo, noto que se estah por acabar. O cao negro fixa-me pacientemente. Volto a olhar para a frente, a lua ilumina agora a base de umas nuvens finas que, por isso, ganham uma graduaçao de cinzento, do mais claro ate ao escuro do ceu. Sei que nalgum momento ela ira subir, passar as nuvens, tornar-se branca e forte e eu nao vou ter mais vontade de a contemplar. Mas tambem sei que o sol desaparecera em breve. Que ha ja uma hora que o vejo. E, na verdade, quando chego ao fim de todo este brilhante raciocinio de logica e pesagem argumentativa, deste debate de sara com sara, dou-me conta de que foi inutil, pois que o faço ja mirando a lua e a decisao tomou-se sozinha. Talvez por ter vislumbrado um sapo gigante debaixo dela e me ter querido aproximar. Creio que tera uma vez e meia o tamanho do meu punho fechado, tento observar-lhe as manchas do dorso, ponho um pe atras do outro devagar, silenciosamente, quase sem me mexer. Mas ele nao se deixa enganar, de um salto aumenta a distancia entre nos e depois vai-se mais tranquilo, em passinhos curtos decididos, resmungando, com certeza, com os seus botoes, que a vida aqui eh bem menos incomoda quando as pessoas decidem nao aparecer.

Entretanto, um puzzle de nuvens coloca-se estrategicamente entre mim e a lua, hipnotizando-me por uns momentos. Ilhas escuras num mar de luz branca. A bicharada menor, como sempre, canta. O ar esta fresco e a ausencia da humidade pesada da selva faz-me respirar melhor. Gosto deste lugar desafogado, penso de repente. Entao os carayas voltam a gritar, ja a noite cerrou, mas desta vez mesmo ali ao lado do caminho onde estou, por onde vinha para casa. Subiram, tal como eu. O Mario aparece para os ouvir, caminha contente, com aquela expressao de naturalista que conheço de outras caras. Eu quero ver a lua ainda um bocadinho mais. Debaixo dela ervas altas, meio secas pelo Verao, picam-me as pernas. Mosquitos tambem. Centenas de pirilampos juntam-se ah festa porque a natureza eh o espectaculo dos sentidos; como, e em que realidade, poderiam faltar pontinhos verdes de luz cintilante?

E, no fundo de tudo, la naquela parte de tras do cerebro onde so chegam mesmo as coisas importantes, alguem levanta um cartaz e me avisa, sorrindo: cheira a hortela! Adoro o cheiro a hortela - que aqui se diz menta.

10 de março de 2009

vigésimo terceiro a toque de caixa

Estou por anunciá-lo há vários dias mas a preguiça e a vida metem-se pelo meio, os planos armam-se e desarmam-se, os mates preparam-se, as conversas estendem-se e os anúncios, ao que parece, são os primeiros a ficar pelo caminho.

Amanhã é novo dia de partida, desta vez para Corrientes, a província do lado, onde vou poder estudar uma outra espécie de primatas - os pachorrentos carayas de que falei no último post. Tudo se decidiu com celeridade: a Clara conhecia uma rapariga que precisava de assistentes já para este mês, enviei o que tinha que enviar, ela falou com quem tinha que falar e aí vou eu para a EBCo, Estação Biológica de Corrientes, local que muito se tem dedicado à primatologia. Sinto-me uma exploradora de centros de investigação... Estou muito curiosa para ver outro sítio "monero", outra gente "monera" e, principalmente, outro tipo de "monos"!

A aventura sul-americana da sara, dizem alguns. Para mim tem sido, muito mais que aventura, aprendizagem. De fora para dentro, de dentro para fora e sempre, isso sempre, com olhos de ver.

Nos próximos tempos não sei se vou ter acesso a internet para deixar aqui novidades. Parece que, pelo menos de início, talvez sim. Depois mudamo-nos para o segundo local de estudo, uma ilha no rio Paraná, onde as condições serão mais básicas - que as almas familiares não se atirem já ao ar, estarei bem e bem contente.

Hoje despediram-se de mim com pizza e cerveja. A noite esteve fresca, creio que se anuncia o Outono. Pareceu-me a noite ideal para um encerramento, o frio no ar recordou-me, de repente, a primeira noite que passei aqui. A reunião em casa do Joni, as caras então novas que agora vejo habituais, a curiosidade simpática que traziam, o fresco inusitado do tempo, a necessidade de uma camisola, a fogueira, a música e as estrelas. Não há nada de que mais goste que um bom fechar de círculo.

Sinto alguma melancolia, mas vou tranquila. Agradecida por tudo o que me foi dado a conhecer.

4 de março de 2009

vigésimo segundo

Muito tempo sem dar notícias, muita actividade, não me levem a mal.

Tinham passado alguns dias depois de a bomba rebentar e viajaríamos decididas aos Esteros del Iberá. Meia colapsada com as mudanças drásticas no que estava por vir, senti-me em transe até à última. Ocorreu-me preparar a mochila e tudo o que seria necessário para acampar na noite de véspera, lás para as onze tardias. Havia também que sacar tudo o que era nosso do quarto que era nosso porque, em quatro ou cinco dias, deixaria de o ser. Assistentes novos viriam para nos substituir. Teríamos que deixar tudo no laboratório, on hold até voltarmos, e entrar nesse quarto que havia sido nosso e que, por uma noite mais, ainda o seria, sentiu-se como um bofetão. Uma ausência de roupa pelo chão, de livros empilhados, paredes agora nuas que se queixavam um pouco do frio, prateleiras vazias que nos miravam desconfiadas, como se as tivéssemos traído e nós ali, meio sem querer ver, meio em silêncio, meio a querer falar sem voz. A Jen ofereceu um pacote de yerba e outro dos meus alfajores preferidos, para que levássemos connosco. Um gesto significativo numa noite chocha. Creio que chuviscava. Ou talvez não.

Um dia e meio depois de termos saído – porque a Argentina é um país bem grande e não é que fôssemos de carro – chegámos a Pellegrini. Para o conseguir, houve que percorrer oitenta quilómetros de terra batida, um acesso que não se pode considerar fácil. Rotas de cansaço, caímos no meio da siesta, quando a povoação parecia deserta e o calor me resulta aqui difícil de descrever. Debaixo dos gritos das cigarras, restou-nos procurar um copo de água, uma sombra e esperar.

Os esteros são zonas alagadas, cujas lagoas se estendem por centenas e centenas de metros, albergando uma fauna imensa de aves, peixes, répteis e mesmo mamíferos. Não é complicado ver carpinchos, os parentes gigantes dos porcos-da-índia, que deambulam pelo parque com o focinho colado ao chão a comer erva ou se banham nos charcos e lagoas, deixando apenas a cabeça de fora. Vêem-se também aves de todo o tipo, jacarés e (para nós o ex-libris) bem pachorrentos macacos-uivadores!

Entre o pueblo e as instalações da reserva, onde foram criados os trilhos para as pessoas passearem, existe uma lagoa. É preciso atravessá-la através um caminho de estrada laranja que leva a uma pontezita metálica e, de novo, do outro lado, à continuação do caminho laranja. Esta travessia acabava por ser feita por nós mais do que uma vez ao dia e encontrávamos sempre qualquer coisa interessante para ver. De manhã cedo, quando o sol se levantava, as aves eram aos milhares. Ao entardecer, as cores do céu – que além de ali parecer ser infinito, com as nuvens baixas a pairar, ainda se espelhava na água parada – obrigavam-nos a sentar nos muretes laterais do caminho, em choque, indignadas com tanta beleza. Amarelos, laranjas, violetas, fúcsias, azuis fortes de nuvens tormentosas e também brancos das de chantilly… Tudo se juntava ali em jeito de celebração ao dia que havia findado. Foram mesmo os céus mais impressionantes que já vi.

A reserva é atravessada por uma estrada. De um lado a extensão da lagoa, paisagem bem horizontal salpicada por pindôs; do outro, uma mancha de floresta diferente daquela a que já me habituei, uma floresta baixa e onde por todo o lado se encontram epífitas penduradas nas árvores. Ali as plantas parecem respeitar-se mais do que em Iguazu e deixam espaços entre si, permitindo ver um pouco mais de chão e facilitando os movimentos. As copas são largas e unidas umas às outras e oferecem uma sombra bem cerrada, criando uma sensação de tranquilidade, de sossego absoluto, como se se tratasse de um gigante jardim muito bem cuidado. Foi nesse estranho silêncio que sentimos, quase por magia, movimentos em cima. Lentos. Algo grande esticava-se entre dois ramos, num equilíbrio complicado. Dobrámos o pescoço para o ver com atenção e lá estava um caraya. São os primatas mais preguiçosos que eu já vi. Sentam-se e descansam durante horas a fio e praticamente não fazem movimentos rápidos. Alimentam-se apenas de folhas, o que é provavelmente o motivo para se comportarem deste modo. É que o verdinho não dá muita energia. Chegámos a passar duas horas sentadas no mesmo lugar a olhar para eles a comer. Isto num Cebus apella seria absolutamente espantoso!

Montámos a tenda no terreno de uma família amável. O senhor Mario, a mãe, Dueña Tomasa, mais as irmãs e todas as demais caras que se sentavam cá fora ao final da tarde e nos miravam com satisfação. Pellegrini é um lugar estranho que se supõe direccionado para a conservação da reserva e para o turismo, mas onde encontrámos lodges às moscas misturados com gente local muito humilde, que faz a sua vida bem devagarinho e olha como quem aceita esse facto. Não se encontra um supermercado, uma caixa multibanco, sequer uma praça central. Acho que estas aldeias não têm o hábito da centralidade. Todos os caminhos são de terra batida e vão dar a outros caminhos iguais, a outros terrenos por cultivar, a outras casa mal terminadas e remendadas a zinco. Às vezes ocorre passar um homem a cavalo.

Já não sei quantos dias ficámos nos esteros mas foi uma viagem que valeu bem a pena do caminho. Acho que as fotos o demonstram…



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12 de fevereiro de 2009

vigésimo primeiro

É difícil encontrar o princípio desta história. Será talvez como mudar de casa e buscar nos cantos já vazios a essência que tinham quando habitados. Não se sente o mesmo.

Chegámos a Iguazú, três gringas e uma local, cedo em Setembro. Armadas pela ordem das moneras como as desconhecidas assistentes de Annie Green, personagem mal-amada (percebemos depois) pela mesma ordem, passámos uma iniciação menos simpática no centro de investigação. Forço-me a entender que seis meses não são uma vida, como agora parece. Os nossos dias no campo, o treino que recebemos, as relações com a hipotética responsável foram, para as quatro, alvo de questões e, muitas vezes, inquietações. E isso uniu-nos, ao longo dos meses, cimentando aquilo que agora é preciso segregar.

Mas voltando ao início. Depois de duas semanas argentinas, a Annie levou-nos a jantar à vila e anunciou-nos, numa frase nervosa, nada mais que a sua gravidez: you guys are gonna be aunts! E tomem lá disto, cuidado não se engasguem com a pizza. Desde aí, e para abreviar o conto que já revivi mentalmente vezes sem conta, iniciou-se a batalha do planeamento e das responsabilidades. Até que ponto será correcto alguém depender de terceiros, voluntários, para fazer o seu trabalho de doutoramento? Que ética, ou falta dela, teria motivado a rapariga a não avisar antes sobre a sua condição? Até que ponto, mais uma vez, seria normal deixar-nos o peso de um projecto em cima, ainda que tencionasse trabalhar no campo até ao oitavo mês? E que falta de maturidade a faria crer que tudo isto funcionaria? Enfim, dúvida foi variável que nunca faltou neste modelo. O que, volto a dizer, contribuiu para que nos fôssemos tornando, aos poucos, quatro mosqueteiros com nobres objectivos indefinidos.

Em termos de trabalho, a Annie foi alterando constantemente as regras depois do jogo começar. Aquilo que de início era fundamental, ponto assente na sua pesquisa, acabava por ser remediado com pouca precisão científica graças às dificuldades do campo. É preciso estaleca e bastante conhecimento para armar uma investigação de comportamento animal em estado natural. Principalmente com animais como macacos, que não sossegam, numa floresta como esta, que não facilita. E não é que não pudéssemos ser compreensivas, não é que não pudéssemos até, quiçá, ajudar a encontrar uma solução. O que sempre incomodou foi a atitude soberba de quem tenta deslizar por cima do mundo, de quem, como dizem por aqui, la tiene muy clara, e não precisa de ninguém para opinar. Depois a atitude foi extravasando para os detalhes práticos da convivência, os horários, os calendários, as contas e tudo se foi enrolando num bolo cada vez mais espesso de frustração e antipatia. No momento em que o desagrado foi assumido publicamente no centro, tudo cresceu exponencialmente, como era de esperar. Aliás, parece-me que, para ela, o facto de não viver com os demais investigadores foi o primeiro erro cometido. O segundo foi o autoritarismo para connosco, as tais pessoas de quem o projecto erradamente dependia. Em terceiro lugar – e isto não é culpa sua – estarão certamente as variações hormonais a que está sujeita.

Como se deu então o clímax, quererão os senhores leitores saber…

Certa tarde a Annie liga para o telemóvel da Tay e avisa-a. I’m out of the field. Com a mesma preparação e suavidade da noite em que anunciou a gravidez. O facto de perdermos um elemento implicava mudar todo o calendário, já que não poderíamos ter dias livres ao longo da semana e teríamos que o compensar com dias ao final do mês. Mas a verdade é que, não obstante as suas certezas de que estaria no campo até ao fim, já nós próprias sabíamos que a coisa se ia dar assim. Ninguém se importou por aí além, assumindo os tais cinco dias no fim de Fevereiro. Uns dias mais tarde, em reunião, ela decide atirar para o ar que achava que talvez não devêssemos ter direito a esses dias porque tínhamos perdido muitas vezes os macacos este mês e, nesses dias, só trabalháramos três ou quatro horas por dia à procura deles. Tudo, sempre, dito com alguma animosidade, como se nos estivéssemos a aproveitar dela – não se entende a que propósito gastaríamos o nosso dinheiro para vir de tão longe e o nosso tempo e energia para a ajudar se o que quiséssemos fosse não fazer nada. Parece-me bastante óbvio. Mas somos todos humanos, todos temos momentos para tudo e o mais importante para o bom funcionamento de qualquer empresa, é tratar das pessoas. Não digo levá-las ao colo, apenas respeitá-las. Sempre que a ouvia sublinhar com propriedade o termo projecto não podia evitar pensar que a criatura não fazia a mínima ideia de que o projecto era uma palavra que nos designava a nós, à gente que trabalhava nele.

Mas a tempestade veio depois. Já uma vez houvera gritos, uma vez que tentáramos entender o motivo de sair a determinada hora e não a outra, procedimento normal de todos quantos trabalham aqui com os mesmos animais. Gritos. Que era o seu projecto, que não tínhamos nada que andar a perguntar a terceiros o que pensavam. Noutros dias, por diferentes motivos, haveria de nos pedir que perguntássemos e pedíssemos informações aos tais terceiros. Sempre nós e nunca ela, porque a nossa função era qualquer coisa que lhe ocorresse no momento. Enfim…

Depois da reunião, e furiosas com a tentativa que a Annie havia feito de saltar por cima dos nossos dias de descanso – principalmente porque ela própria já não ia ao campo e, portanto, estava-se claramente nas tintas para o cansaço físico – a Tay e a Jen foram até ao território Silver ver, mais uma vez, se encontravam os animais. Era noite de jantar na vila para despedida da Vero, que ia de férias, e as duas optaram por regressar a casa meia hora mais cedo, de modo a não perderem o autocarro das oito. O último.

Parece então que a Annie ligou para cá à hora do jantar e, tendo-se dado conta que estávamos todos a jantar fora, juntou um neurónio com outro e entendeu que elas teriam que ter saído antes de escurecer para apanhar o autocarro. O que fez em seguida? Ligou para a Taylor, gritou e insultou-a. Não a deixou falar, disse assumidamente que não queria ouvir nada, só gritar. Muito descompensada a criatura… Por incrível que pareça (ainda hoje me parece incrível), seguiram-se quatro dias de total incomunicação. Não atendia telefones, fugia de casa quando sabia que íamos lá, era como se tivesse deixado de existir. Deixávamos-lhe recados no telemóvel, notas na mesa da cozinha, pedíamos ao namorado que falasse com ela. Terminou por escrever-nos uma carta e pediu ao mesmo que a entregasse. O conteúdo passava por que não podia confiar em nós, que éramos os pilares do SEU projecto (maiúsculas da própria) e que isso a desesperava. Que não sabia o que fazer, estava muito mal, não nos conseguia encarar e que agora queria um pedido de desculpas de todas. Elas, por terem “abandonado” o campo irresponsavelmente; eu e a Mica por não lhe termos telefonado a contar essa falta das nossas colegas. Nessa tarde, em pé no laboratório, asquerosamente transpirada depois de regressar da floresta quase em passo de corrida, a cada frase que lia dessa folha vincada em quatro, o queixo caía-me mais e mais. A Jen ia mudando de cor e, a um terço da página, atirou-a para o chão, murmurou com raiva fuck this! e saiu com chispas nos olhos.

Nessa noite, avisada a visita via namorado, fomos à sua casa. Tinha saído. Esperámos uma hora e meia, fazendo conversa de circunstância com ele, metido na coisa por força das circunstâncias. Disse que não fazia ideia por onde andava a Annie. Às onze e meia decidimos que era demais. Saímos e, no momento em que a porta se fechou, ficou decidido que não trabalhávamos mais para aquela pessoa evidentemente lunática. Toda a paciência tem limites. Ainda dissemos ao rapaz que voltaríamos no dia seguinte de manhã mas ele depois ligou para o cies a avisar-nos, na manhã seguinte, que não fôssemos porque, mais uma vez, ela não estaria. Decisão certa, portanto. Tarde demais quando, ao fim desse dia, depois de receber os nossos e-mails de desistência do seu precioso projecto, nos pediu um encontro em território neutro para lacrimejar e implorar uma oportunidade. Várias oportunidades foi o que recebeu ao longo dos últimos seis meses, sem nunca lhes ter dado qualquer valor, tratando-nos sempre como instrumentos em vez de pessoas. Ter gente a seu cargo a trabalhar numa floresta um dia inteiro implica preocupação. Nunca vi um responsável que se estivesse de tal modo nas tintas que virasse incomunicável por quatro dias. E se tivesse acontecido alguma coisa a uma de nós? Se precisássemos de ajuda? Para mim tudo isto é básico. Para quem vive fechado nas suas próprias paredes e não vê mais que o seu gigante umbigo, talvez seja uma grande viagem deitar uma mirada para quem está lá fora. De qualquer modo, no que nos diz respeito, chegámos ao fim da linha com a Annie. Game over.

Soluções apresentaram-se entretanto e passam por ajudar o outro grupo de pessoas que estuda macacos aqui no parque. A Mica ir-se-ia embora dia quinze de qualquer maneira, pelo que os seus planos não se alteram. A Jen fica até ao fim do mês (também como previsto) colaborando no projecto da Clara. A Taylor passou oficialmente a ser assistente da Clara até Agosto. E como não há mais que esses dois lugares este mês, a je vai dar uma volta pela região durante uns dias, receber a irmã durante outros dias, conhecer Buenos Aires e, depois, voltar em Março, ficando com o espaço que fica quando a Jen partir.

É tudo estranho, tudo abrupto. São pessoas que vivem comigo, com quem partilho tudo há um tempo talvez curto mas que se sente velho. É uma dor fininha que se instalou. Um vazio redondo que se sente frio, aquela certeza de que o que foi não volta a ser.

11 de fevereiro de 2009

[novo comentário quase nada]

Mudanças, mudanças...

A chispa electrizante do mundo que salta e avança (porque o universo está sempre em nós) anda por aqui no ar.

Depois já cá volto para contar os altos e baixos.

31 de janeiro de 2009

vigésimo

O acontecimento da semana podia ser a desistência do chubbie. Participou há cerca de quatro dias – e após duas chamadas de atenção da boss – que não estava satisfeito, não gostava do campo e que, ao ter telefonado à mãe a contar a situação, esta lhe tinha dito que regressasse. Sete dias de floresta para acrescentar ao currículo já lhe parecem suficientes.

Ora bem…

Quando chegou, vinha com olhar ausente e uma sisudez impossível de contornar, anatomia complicada para o campo e hábitos alimentares meio estranhos. Provocava um misto de pena e de desconfiança. Mas não é que não tenhamos tentado encontrar algo que permitisse uma convivência saudável. Esperava-se que o entusiasmo pela bicharada acabasse por criar alguma ligação entre nós e, no mínimo, fosse catalisador para um conjunto básico de reacções da sua parte. Só que o entusiasmo consistia em chegar à floresta e sentar-se no chão a olhar as formigas – o que seria fantástico se as formigas fossem o objecto de estudo. Recusava-se a sair dos trilhos para seguir o grupo e nem sequer levantava os binóculos para aprender as caras dos indivíduos. Certa tarde, enterrou uma bota na lama suga-tudo, aquela que tratamos de evitar a todo o custo e – isto é real – descalçou-a, retirou o pé, sentou-se no chão e anunciou bem alto que não a conseguia tirar. Assim, sem qualquer esforço. A desculpa era que tinha enfiado um pico no dedo quando tropeçou. Inacreditável. E não podendo, nessa condição, sacar a bota, quem vai em seguida tentar fazê-lo? Annie, a grávida de serviço, com uma pança de seis meses. Ao mesmo tempo a Taylor ia gritando ao fundo, enquanto se arranhava fora de trilho, afastando lianas e tropeçando em todo o lado, que era preciso escavar com as mãos a lama à volta da bota e só depois puxar pelo calcanhar. Mas a verdade é que a outra já mal se consegue dobrar e o processo não mostrava evoluções. O chubbie seguia sentado ao seu lado, de pernas esparramadas e abertas, fixando o dedo que o fatídico espinho atacara. E então vem de lá uma Taylor furiosa, dorida por andar à catanada sozinha com um braço onde lhe haviam picado duas abelhas, a doce Taylor que eu juraria ser incapaz de se zangar, volta tudo para trás, chega furiosa, escava furiosa, furiosa dá um safanão à bota e atira-lha para o lado. O querido não agradece (afinal, por que o haveria de fazer?).

Uns dias depois acabaria por confessar que não gostava de calor, que havia muitos mosquitos e que as condições da estação de campo não eram as que esperava. Que o incomodava também que nem todas as pessoas aqui falassem inglês (!!!). Amigo, uma ideia simples: estás na Argentina! Por muita mãozinha norte-americana na política do país, supõe-se que a língua oficial ainda é o castelhano. Mais: pelo menos oitenta por cento das pessoas que vivem no cies entendem inglês. Não faz sentido o que dizes.

Passou os restantes dias (em que já não ia ao campo) sentado à mesa, no alpendre, fixando o vazio no tampo da mesa ou no tronco das árvores em frente. Suspeitei de autismo. Não há dúvidas que falha rotundamente no relacionamento social. Mas a verdade é que depois lá acabava por falar, menosprezando sempre o que lhe oferecia este parque e esta floresta e pondo ares de conhecedor da natureza e do campo de outros lugares. O que acabava por ser ainda mais irritante.

Bom, o resultado é que ficamos sem substituto treinado para a Mica e, apesar de vir outra pessoa no seu lugar, não será no tempo previsto. Vai ao ar o calendário e cheira-me a trabalho extra. Enfim, logo se vê.

18 de janeiro de 2009

décimo nôno

Naquele dia era dia de nos sentirmos quase exploradoras, quase imagens desenhadas num ecrã, generalização fantástica – fantasiada – de gente que estuda animais na floresta.

Saímos à uma, debaixo de um sol que fazia pouco de nós, pelo caminho que parte das traseiras dos quartos. A mochila carregada, além da tralha dita normal, com um termo de água gelada para, mais tarde, preparar o tereré. As botas altas de borracha e a fricção das meias na pele a lembrarem que já o dia anterior tinha deixado as suas marcas. Os phones metidos nos ouvidos porque facilitam o esforço de chegar até ao fim do percurso – ou de voltar a casa mais tarde. É que com música vai-se mais leve, absorvido num mundo interior que compete com qualquer outro entretém. E esquecem-se um pouco os tornozelos e os gémeos…

Uma perna atrás da outra, comandadas pelo ritmo invisível, nenhuma delas se importava com as gotas de suor que escorriam da testa. Nem eu me importava muito. As curvas do caminho já me conhecem. As raízes saídas da terra laranja não me fazem mais tropeçar, ainda que as botas resistam com algumas teimosia a ser levantadas do chão – ganham vertigens, diz quem sabe que é coisa normal em calçado.

Assim, passando os quarenta minutos por quinze, chegámos num instante. Cruzámos a pequena ponte de tabuinhas por cima do riacho e, pelo rádio, as moneras da manhã informaram-nos que os macacos se dirigiam para a pequena cortada em que nos encontrávamos. Então sacámos as mochilas das costas e sentámo-nos, atentas, à espera de um salto na vegetação. Muitas vezes é assim, um anúncio de presença num mar de verde. Fixam-se as copas, ouve-se o vento, procura distinguir-se um abanão nas folhas. Dez minutos, quinze, até que, de repente, se avista um que já vem.

Nesse dia lá veio o primeiro, mas logo lhe deu para virar para sul e voltar a desaparecer. A única maneira de seguirmos tal direcção era pelo riacho, já que a água ia baixa e não atingia a altura das botas. Descemos as quatro o pequeno barranco e lá nos enfileirámos, procurando pisar sempre as rochas mais altas. E de princípio tudo bem, controlada a água. Lentamente, ao passo que ela permitia, fomos passando por zonas lindíssimas, uma visão da floresta que normalmente não nos toca ter. Por vezes o riacho alargava-se um pouco e as árvores em cima formavam abóbadas com lianas penduradas, lembravam histórias de “tarzans”, davam-me muita vontade de ter uma câmara à mão. Nesse dia não a levava. No total, e praticamente sem darmos por isso, seguimos dentro de água por três horas. Três divertidas horas. Fora a paisagem, para mim, o momento alto esteve no esforço da Taylor para subir a uma margem – a qual para ser atingida implicava trepar um barranco de barro com um metro de altura – ajudada pela Veronica, que lhe empurrava o rabo, gritando “ahora, ahora, dále Tay!”. Para no fim se estatelarem as duas, como seria de prever, e verem as botas e as calças encher-se de lama e água apodrecida. Depois disso quase valia tudo, ataque de riso generalizado.

Para terminar a aventura, num golpe de autodeterminação típico de mono, o grupo decidiu virar a sul. As moneras que se lixem para sair do rio e abrir caminho à catanada por entre os rebentos do bambu mais irritante do mundo. Muitas canas secas a estalarem debaixo dos pés, o sol directo, a transpiração a escorrer em linha pelas fontes. O desejo de não encontrar uma cobra pelo caminho… Até que, por fim, se avistou uma das fitas coloridas que vamos deixando nos caminhos, para nos guiar. “Laurel, chegámos a Laurel!” A alegria de encontrar um trilho só é comparável à que sentimos ao fim do dia, no regresso a casa, depois de fazer a última curva dos três quilómetros de caminho, naquele momento exacto em que se avista o monte de bromélias que antecede o portão do cies.

Eu gosto de dias assim, com novidades no percurso. Ontem, com a mesma combinação de compañeras, descobrimos um bambu novo (mas dos grandes, aqueles onde os monitos dormem e de que se alimentavam antes de começarem a secar) quase a cair para o Iguazú. Foi dificíl chegar, uma visão inesperada mas, não há que negar, uma paisagem brutal junto ao rio. Voltar a subir, mais uma vez, foi outra conversa. Fomos para oeste. Resolvi seguir um leito de riacho que vai seco por achar que teria menos impedimentos vegetais que a envolvente e – enfim – não é que estivesse enganada mas também não se tratava de uma autoestrada. O problema é que saía connosco, e pela primeira vez durante o calor da tarde, o nosso colega novo, Mike Myers. Sim, é mesmo o nome dele e também é verdade que, por uns dias, houve a expectativa que nos aparecesse o outro mais conhecido Mike Myers no meio da selva argentina (o que seria!), mas não. Infelizmente o Mike não parece estar em forma física, é um chubby de Saint Louis bastante estereotipado como a criança comedora de MacDonald’s toda a vida. Diz que não come vegetais, que não gosta. Só hambúrgueres e frango. Daí que raramente se junte para jantar connosco e, até agora, as suas refeições permaneçam um mistério para os demais. Gatorade, peanut butter à colher e barras de cereais foi tudo o que já o vi beber e comer. É um treino à força, este inicial. E acho que ontem a longa caminhada, seguida de toda uma tarde fora de trilho a descer até ao rio e depois voltar a subir, a modos que o arrasou. A cada passo que dávamos na subida podia ouvi-lo ofegar. Hoje, felizmente, a jefa deu-lhe dia livre para descansar. Só agora me apercebi da resistência que todas acabámos por ganhar ao longo dos meses, caminhar horas seguidas, ficar especada de pescoço torcido a olhar para o alto, subir, descer, trepar, já tudo parece perfeitamente normal. Plantas dos pés insensíveis, músculos feitos pedra ao fim do dia e sorrisos cansados na cara, tudo se pode somar e depois dividir. Todos lá chegaremos.

10 de janeiro de 2009

décimo oitavo

Hoje não me estendo muito mas, como diria a querida Mimi: olha meu amor, não é muito mas é de boa vontade!

Abano-me na cama de rede mais afastada da cozinha. O caderno dobrado no colo, a transpiração eterna na pele e, do rádio, uma alternância entre reggaeton e qualquer pirosada latino-romântica. Tudo está calmo. Uma cose a roupa destroçada pelo campo, outra olha o guia ornitológico da América do Sul como quem pensa em tudo menos aves. Na outra rede, uma terceira esparrama-se lendo Harry Potter e esforçando-se por não mexer um músculo. Qualquer coisa faz aquecer. No ar também não se sentem movimentos. Do cimo do telhado levantam-se ondas bruxuleantes, quase invisíveis, que me recordam por que já não aparecem por aqui os macacos. O reggaeton segue com o batuque a volume moderado. Alguns dos vizinho lagartos, de impressionante tamanho, serpenteiam devagar pelo jardim. Assim é este momento.

Fala-se de como a influência dos jesuítas em certa região da Bolívia fez manter, até hoje, uma tradição de música barroca com instrumentos criados pelos indígenas. Algo com o toque de estranheza que sempre têm as misturas – pelo menos à primeira vista. Mas, na verdade, o que é que com o tempo não se mistura? Guiada por Martin Page aprendi recentemente que as navegações portuguesas abriram em par as portas ao comércio internacional. Pode parecer básico, algo que me devia ter ficado da escola, mas a verdade é que só agora se pinta o quadro geral – ou talvez me dedique pela primeira vez a pensar o assunto em vez de decorar as frases dos livros para os testes. O caril da Índia possível por se terem levado picantes da América do Sul, o hábito do chá com bolos às cinco da tarde instituído por Catarina de Bragança na corte inglesa (chá esse vindo da China, de caravela, até Lisboa), tempura como técnica de cozinhar ensinada no Japão pelos portugueses. Tudo “very typical”. Tudo, apenas, exemplos de misturas. Para não falar em povos ibéricos, celtas, mouros e romanos. Sinto-me esmagada com tanto que temos, todos, para trás.

Os dias aqui já se sentem um pouco mais curtos. Em vez de sair às cinco e quarenta da manhã, já saímos às seis. Sim, grande alegria! Até a caminhada se faz mais animada. É interessante ver também as árvores de fruto de que se alimentam os macacos a serem substituídas umas pelas outras, à medida que eles (os frutos) amadurecem e secam. As diferentes áreas que os bichos vão preferindo em função disto mesmo. E o como agora passam tardes inteiras junto ao rio para se refrescarem com o ar menos quente. Gosto de ver o tempo a passar.

A este ponto já quase todos regressámos ao CIES. Turnos para cozinhar, para lavar, para usar o modem, acabaram-se as férias! Em breve, seguramente, se organizará o primeiro asado de 2009 e começa a avistar-se, ainda que, por enquanto, ao longe, o tempo de algumas despedidas. Porque gente vai, gente vem, é assim mesmo.

Tenho-me entretido também, sempre que posso, a filmar os macacos com uma câmara que trouxe de Lisboa. Com muita falta de arte, diga-se, mas lá vou tentando perceber como se faz a coisa. Quando souber como – e tiver tempo de antena na internet para tal – tento deixar aqui um vídeo.

Agora, como estou de folga, acho que vou ali dar um passeio às cataratas, que ainda as não vi desde que voltei e o tempo já se pôs bonito depois da tormenta de ontem.

¡hasta pronto!

5 de janeiro de 2009

décimo sétimo

nota: alguns problemas internéticos obrigaram-me a escrever este post num ponto de internet na vila, pelo que nao encontrei, no teclado, o til e o cê cedilhado; as minhas desculpas se tal dificultar a leitura (embora eu saiba que o leitor é versátil e deve bastante ao trabalho neuronal); assim que puder, corrijo-o no meu próprio computador; ¡saludos!

A Argentina recebeu-me fresca e muito tranquila. Esperava o calor irrespirável que fazia quando a deixei e, em vez disso, fui recebida com um suave tempo de primavera. Nem as cigaras se davam ao trabalho, na noite em que cheguei, de camisola ainda vestida. Nessa frescura da madrugada, o CIES escuro e quase vazio, silencioso, cheirei de novo este lugar. Está diferente. Perguntei à Jen. Nao achas que está diferente? Encolheu-me os ombros, disse que havia chovido muito nos dias anteriores. E que o seu nariz nao era bom. Tenho a certeza que está diferente.

Continua a surpreender-me como, vinda do Brasil, me sinto em casa deste lado da fronteira, onde se fala uma língua que nao é minha.
No aviao que me transportou do Rio de Janeiro para a Foz do Iguacu, calhou ficar sentada ao lado da única argentina do vôo. Que respirava com dificuldade, escondia a cara entre as maos e tremia muito. Até entao nao a sabia argentina, mas quando me agradeceu o copo de agua que lhe fui buscar com um atrapalhado “gracias”, foi quase como se me tivesse dito obrigada. Tive de imediato aquela sensacao que se tem ao encontrar um português no estrangeiro, esse saber que se partilha algo – nem que seja, neste caso, que a outra pessoa nao vai fazer caretas ao tomar mate (como verifiquei acontecer em cem por cento dos casos em casa).

Sós argentina? No, soy portuguesa. Ah... yo vivo en España hace veinte años. E assim comecaram três horas de conversa com a Iris, uma cinquentona a quem, passada a crise de claustrofobia, nao faltava boa disposicao. Falou-me da familia, dos amigos, das saudades que sente do seu país e, também, da Galiza que muito admira e visita. De Madrid, onde vive, nao gosta. Uma cidade grande é sempre uma cidade grande.

Dei-me conta que ambas falávamos um misto de "espanhol" e "argentino", mas que esse intermédio nao se assemelhava entre si. Eu nao conheco expressoes espanholas, uso as argentinas numa entoacao mais neutra. Ela falava com o encantador cantar argentino, mas soltava exclamacoes que aqui nunca oico. A cada "joder" eu até estremecia! Teve piada. Às tantas, virou para mim a capa do livro que levava no colo. A psiquiatria do pânico - truques para superar. Franziu o nariz e, em jeito de segredo, sussurrou: nao funciona.

No dia seguinte já as quatro caminhávamos floresta afora, em busca do grupo "Silver". Entardecia e a vontade era mais de conversar que de ser monera. Mas lá os encontrámos. E continuou-me a parecer que as coisas estavam diferentes. Nao havia mosquitos. Nao transpirávamos. Tudo cheirava maravilhosamente a madeira (há uma certa árvore que cuja casca tem um cheiro a dociado a flores) e, por vezes, à planta que tem odor a limao. Reapareceram alguns fungos. E a luz do entardecer está magnífica - ou talvez tenham sido os dez dias de inverno europeu que me alteraram os sentidos.

Além de tudo isto, passa-se que há vento. Aqui, normalmente, só há vento quando há tormenta e é daquele género que faz o mundo vir abaixo, as árvores dobrar-se até ao limite e, embora seja também fantástico, é muito difícil de disfrutar de dentro de casa. Assim, este novo tipo de vento, mais familiar, é uma boa surpresa. Tem laivos dos dias em que Portugal comeca a aquecer e nao podia cair melhor para rematar o meu curto inverno.

Trouxe vinho do porto para todas, "O Papalagui" para a Mica e uma pilha de outros livros para mim. Sei que a Clara trará filmes novos. Troquei também alguma roupa e passeio-me agora com modelitos que fogem às três toilettes anteriores. Dizem-me que é estranho. E trouxe fado, a pedido (obrigada Joao), bem como música pimba (sim, nao é mentira, foi-me pedida música pimba!). Cultura nao discriminatória e seu transporte além-mar, à boa maneira portuguesa.

O que me custa? As saudades de todos. Mais uma despedida, mais algumas caras compridas - embora menos lágrimas desta vez. Nao estar para assistir à tal primavera. Nao poder ver o mar quando quero. Perder bons filmes nos cinemas e aniversários a tempo e horas. Que nao seja época de laranjas e tangerinas aqui. Que o lume nao sirva para aquecer mas sim, apenas, para cozinhar carne. Apesar de tudo, uma conclusao tiro da minha estadia em Lisboa: adoro a minha casa, adoro estar à distância de um "vem cá ter", mas a cidade nao me trata bem. É intensa demais, agressiva de mais, impessoal demais. Falta-lhe tempo para ter tempo.

Chegada ao parque, respirei fundo e tranquilizei-me.

3 de janeiro de 2009

[comentário quase nada]

Bem, estou de volta.

Passou o interregno natalício, a curta luz de Lisboa no inverno e a estranha sensação de retornada.

Entrámos em 2009. Um feliz, a todos! :)

Amanha já cá volto para dizer coisas...