3 de dezembro de 2008

décimo quarto

Dia de Acção de Graças. Mais um primeiro. Na quarta quinta-feira de Novembro celebra-se o dia em que colonos ingleses e indígenas norte-americanos partilharam comida - o que dificilmente terá acontecido, mas mantenha-se o cinismo necessário ao bom funcionamento do sistema. Resulta o dia num género de Natal sem prendas, em que a família se reúne para agradecer e comer. Não me parece mal.

Para as amazing trata-se de uma data importante e, por tal facto, decretou-se dia livre a tal quinta-feira. Mais, associando a festa ao facto de termos terminado as focais mais cedo que o previsto, foram-nos concedidos não um, mas uns muito desejados quatro dias livres! E assim nasceu a ideia de ir armar o estaminé noutra selva que não esta. À primeira vista parece, sem dúvida, estranho que tiremos férias da floresta na floresta do lado. É quase como sair de casa e tocar à campainha do vizinho da frente, ora com licença aqui estou, com certeza faça favor. E porque não? O espaço será mais ou menos familiar, os ângulos conhecidos, as simetrias automáticas, mas o recheio será diferente. A vista não se repetirá. E o que se fará em casa do vizinho, nalguns dias de férias, será aquilo que se faria na própria casa? Estou tentada a arriscar um “não”.

Não sei bem a quantos quilómetros fica o parque Urugua-í das cataratas. Seguramente não alcança os cem. Chega-se pela estrada que passa por Wanda e vai para Andresito e, à partida, estranha-se um pouco que a recepção do lugar, a própria casa dos guardaparques, esteja plantada logo à beira do asfalto, à mercê de camionetas e buzinões. Mas, assim que saímos e o veículo se vai, logo se entende que agitação não mora ali. A estrada estende-se num abandono de espaço aberto rasgado na selva. O calor aperta, só as cigarras bulem. Um rapaz novo que certamente goza a boa da sesta no alpendre, levanta-se para nos receber, indica o espaço para acampar e depressa se vai – talvez de volta ao merecido descanso. E então há uma pausa no ar. Entreolhamo-nos. Outro lugar. Há sempre uma pausa quando se chega e se largam os sacos, quando se olha em volta e se avalia a casa do vizinho. Este vizinho tem árvores um pouco mais altas que as nossas, menos entraves arbustivos, um belíssimo espaço de sombra para as tendas, um riacho logo em frente, muitas moscas mas não mosquitos e um silêncio igual ao nosso mas que, em casa, não conseguimos ouvir. Não é um camping, é um espaço na selva onde se pode sossegar. Dormir que nem sardinhas enlatadas dentro de uma tenda emprestada, se assim o desejarmos. Porque não? De facto, o quarto de dois por três no CIES tem essa inconveniência de ainda nos permitir respirar individualmente. Acampadas, nenhuma se pode mexer na tenda sem espetar um dedo no olho de alguém ou roubar cinco preciosos centímetros da esteira do lado. Mas não, não foi pelo incómodo que fomos. Fomos pelo prazer de sair – que o permanecer ameaçava provocar-me tiques nervosos – e, na verdade, o tempo não nos permitiu ir mais longe. Tudo aqui tem tal dimensão que deixar a selva para trás tardaria bem mais que o desejado. Mar para que te quero!, vejo-te a uns inquietos 600 quilómetros de distância. Uff… Formulo pensamentos reciclados sobre a santa terrinha. Que lindo e que fácil ser-se pequeno! Não há preto nem branco, bem sei, mas, além da escala cinza, as cores caem sempre bem.

Não sei se me encantou mais mergulhar na água fresca pela manhã ou hipnotizar-me com o fogo contra as silhuetas nocturnas das árvores. Pode ser que tenha preferido as borboletas às centenas que nos rodeavam à entrada da ribeira. Ou o som da floresta a entoar melodias noite fora. Estou por decidir.

Viajar é muito falar com as pessoas. Ter paciência, dar tempo para vir o que é possível que venha. Aceitar sem esperar e dar com essa mesma inocente surpresa. Senão, é um pouco como passar por cima flutuando. Quanto mais tempo estou aqui mais me apercebo do quanto tarda conhecer um local, do quanto é preciso entrar no ritmo, assumir os hábitos. Mas isto virá talvez a outro caso, não a este.

Certa noite, um dos guardaparques, Rolando de seu nome (contive a gargalhada amigo gandamaluko, contive mesmo uma enorme gargalhada), enfim, sabendo o senhor do nosso desejo de conseguir ver um tapir, fez-nos o jeitinho. Acontece que, na selva, toda a fauna se pela por um bom cloreto de sódio, recurso escasso e fisiologicamente importante. Assim, sabendo de um específico local onde passam, por vezes, tapires, basta deitar sal na terra ao entardecer e, nessa mesma noite, um dos mais caricatos animais que já vi passará para uma visita. Assim foi. Tomadas pela expectativa, guiadas pelo Roli, atravessámos a estrada e entrámos alguns metros no breu da selva cerrada. Ali estava. Iluminada pelo foco, uma fêmea lambia os beiços que ia molhando na lama. O focinho, uma probóscide com manias de grandeza, movia-se comicamente para cima e para baixo. Do tamanho de uma vaca, um curioso aspecto de algo que não logrou ser elefante e uma disposição tranquila, ali se deixou ficar, exibindo os movimentos lentos e despreocupados de quem está em casa. E nós calados, imóveis, respirando devagar para não fazer deslocar moléculas, como crianças que espreitam para onde não devem e se compenetram em gravar as imagens na memória. O animal quase não fazia ruído. Enorme e silencioso, olhava-nos de vez em quando e logo voltava a baixar o focinho para o solo. Insectos contestavam, sapos e rãs barafustavam, algumas formigas insistiam em morder-me, mas a tapir estava de actriz principal, as luzes apontavam-se-lhe e o público só não aplaudia porque não podia. Creio que o adjectivo "único" não podia ser melhor empregue para o momento.

Num dos outros dias, passeando pelo trilho dos tapires à luz do sol, demos, sem querer, por um som para o qual temos já tímpanos bem afinados: monitos saltando. Lá estavam. Foi interessante perceber o quão habituados os nossos grupos estão à moléstia de investigadores que não descolam. Muito antes que nos tentássemos aproximar, os animais tinham já passado a uma área mais interior e ficámos a ouvi-los chilrear à distância. Somos umas mimadas, de facto.

Quanto ao dia de acção de graças em si mesmo, foi tal qual como os outros. Ler, dormir, nadar, socializar q.b., aquecer água para o mate, gritar impropérios às moscas… Mas, à noite, o rastafari de serviço – única alma acampante além das nossas, criatura com relação muito própria com o calendário maia (!) – decidiu ser uma boa ideia fazer uma espécie de pão fininho, como o “nan” dos indianos. Uma excelente sugestão. Juntámo-nos no processo, simbolizando a tal partilha de comida entre indígenas e colonizadores - aposto que a nossa foi mais agradável. Amassámos, amassámos e amassámos. Sobre a fogueira grande havia uma pedra plana elevada que permitia espalhar as brasas por baixo. Assim fomos dispondo o pão e cozendo a massa que havíamos espalmado e salpicado de especiarias. [muy rico diria eu, mas isso era se me fosse armar em emigra catita]

Devidamente descontraídas, talvez até preenchidas, regressámos às cataratas um pouco a contragosto, à boleia de uns guardas conhecidos que tinham ido a uma reunião no Urugua-í. Sentei-me na caixa aberta da carrinha e, com selva dos dois lados, sob um sol subtropical que àquela hora já não ia forte, vi o pó da estrada 101 virar uma nuvem laranja que se arrastava atrás de nós. À nossa passagem borravam-se árvores, casas, submergiam-se pessoas, afogava-se o interminável verde. Acelerando. Foi assim que o guardei, um tremer de rodas na terra batida, um calor de luz nos braços e na cara, um entre cá e lá que não queria que terminasse e uma nuvem que tudo ia engolindo. Um filme tornando-se real.

9 comentários:

Jose Ruah disse...

O Diário de Viagem já é um sucesso!
Mesmo parecendo intrometido, agradeço envio de convite para o lançamento do Livro de Viagens, quando este ocorrer.

Aline Cortez disse...

Ao fim de um mês tive o prazer de recomeçar a minha viagem pela Foz do Iguaçu.
E pronto ! Levaste-me lá para Urugua-í. Só não gostei lá muito de dormir na tenda apertadinha, o resto soou-me muito bem.
Tive esperança que vocês terminassem a amassadura do tal pão estendendo no joelho. Tinha graça ! ?
O tapir adorei a novidade. Claro que fui, de novo, googlar e estive a ver fotos. São mesmo muito feios !
O Dia de Acção de Graças pareceu-me bem concebido e uma boa prática a adoptar para o nosso Natal, pelo menos para 2008.
Quanto ao de 2009, dependerá de quem tiver ido ao melhor astrológo: o presidente ou o primeiro-ministro.
Bjs da tua mmz Aline

PS - qual vai ser a hora que conta ? A daí ou a daqui ?

Aline Cortez disse...

E que tal se dessem os parabéns à nossa grande escritora ?

Aqui! No dia certo! Ao vivo e a cores ! (já agora agora acho que a madrezita tb merecia qquer coisita.)

Bora a teklar, malta ! A Sara faz hoje anos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Inês disse...

Olé!

Já tentei o sms e o mail. E porque não o blog? Grande ideia, Mãe Aline!

PARABÉNS, LITTLE BABE ;)

Volto a perguntar: skype, msgr, nº telefone do CIES? Será possível ouvir hoje a tua voz mais velha? Eu gostava...

Muitos beijinhos e abraços,

Inês

Jose Ruah disse...

Cumpra muitos ! Tenha um resto de dia de Aniveversário bem passado.
Parabens

Anónimo disse...

feliz cumpleaños. que la pases lindo.
"amazing", right?

(muito óbvio, eu sei, mas não pude evitar)

MB disse...

Sara, aqui ja é dia 8 mas ai nao e por isso acho que ainda vou a tempo de te deixar um beijinho enorme de Parabéns. Como pessoa muito mais experiente do que tu que sou, dadas as horas de vida que nos separam, peço-te que aproveites ao maximo esta tua vivência fantástica. Bem sei que este aniversário será diferente, e que se em muitas ocasiões a saudade bate à porta, hoje será certamente uma delas. Mesmo com o aconchego humano proporcionado pelas novas tecnologias, aniversário com as "amazing" não será "super amazing".
Tic tac,o tempo conta para vires matar saudades ao "contenente" e carregar baterias de regresso à selva. A ti. Um beijinho grande. Mó

sara disse...

obrigada a todos!!
jodua, vejo que manténs "hábitos" argentinos... ;) y si, lo pasé re lindo

Unknown disse...

tá agendado no tlm. lol
pelo menos já não me esquecerei.