31 de janeiro de 2009

vigésimo

O acontecimento da semana podia ser a desistência do chubbie. Participou há cerca de quatro dias – e após duas chamadas de atenção da boss – que não estava satisfeito, não gostava do campo e que, ao ter telefonado à mãe a contar a situação, esta lhe tinha dito que regressasse. Sete dias de floresta para acrescentar ao currículo já lhe parecem suficientes.

Ora bem…

Quando chegou, vinha com olhar ausente e uma sisudez impossível de contornar, anatomia complicada para o campo e hábitos alimentares meio estranhos. Provocava um misto de pena e de desconfiança. Mas não é que não tenhamos tentado encontrar algo que permitisse uma convivência saudável. Esperava-se que o entusiasmo pela bicharada acabasse por criar alguma ligação entre nós e, no mínimo, fosse catalisador para um conjunto básico de reacções da sua parte. Só que o entusiasmo consistia em chegar à floresta e sentar-se no chão a olhar as formigas – o que seria fantástico se as formigas fossem o objecto de estudo. Recusava-se a sair dos trilhos para seguir o grupo e nem sequer levantava os binóculos para aprender as caras dos indivíduos. Certa tarde, enterrou uma bota na lama suga-tudo, aquela que tratamos de evitar a todo o custo e – isto é real – descalçou-a, retirou o pé, sentou-se no chão e anunciou bem alto que não a conseguia tirar. Assim, sem qualquer esforço. A desculpa era que tinha enfiado um pico no dedo quando tropeçou. Inacreditável. E não podendo, nessa condição, sacar a bota, quem vai em seguida tentar fazê-lo? Annie, a grávida de serviço, com uma pança de seis meses. Ao mesmo tempo a Taylor ia gritando ao fundo, enquanto se arranhava fora de trilho, afastando lianas e tropeçando em todo o lado, que era preciso escavar com as mãos a lama à volta da bota e só depois puxar pelo calcanhar. Mas a verdade é que a outra já mal se consegue dobrar e o processo não mostrava evoluções. O chubbie seguia sentado ao seu lado, de pernas esparramadas e abertas, fixando o dedo que o fatídico espinho atacara. E então vem de lá uma Taylor furiosa, dorida por andar à catanada sozinha com um braço onde lhe haviam picado duas abelhas, a doce Taylor que eu juraria ser incapaz de se zangar, volta tudo para trás, chega furiosa, escava furiosa, furiosa dá um safanão à bota e atira-lha para o lado. O querido não agradece (afinal, por que o haveria de fazer?).

Uns dias depois acabaria por confessar que não gostava de calor, que havia muitos mosquitos e que as condições da estação de campo não eram as que esperava. Que o incomodava também que nem todas as pessoas aqui falassem inglês (!!!). Amigo, uma ideia simples: estás na Argentina! Por muita mãozinha norte-americana na política do país, supõe-se que a língua oficial ainda é o castelhano. Mais: pelo menos oitenta por cento das pessoas que vivem no cies entendem inglês. Não faz sentido o que dizes.

Passou os restantes dias (em que já não ia ao campo) sentado à mesa, no alpendre, fixando o vazio no tampo da mesa ou no tronco das árvores em frente. Suspeitei de autismo. Não há dúvidas que falha rotundamente no relacionamento social. Mas a verdade é que depois lá acabava por falar, menosprezando sempre o que lhe oferecia este parque e esta floresta e pondo ares de conhecedor da natureza e do campo de outros lugares. O que acabava por ser ainda mais irritante.

Bom, o resultado é que ficamos sem substituto treinado para a Mica e, apesar de vir outra pessoa no seu lugar, não será no tempo previsto. Vai ao ar o calendário e cheira-me a trabalho extra. Enfim, logo se vê.

18 de janeiro de 2009

décimo nôno

Naquele dia era dia de nos sentirmos quase exploradoras, quase imagens desenhadas num ecrã, generalização fantástica – fantasiada – de gente que estuda animais na floresta.

Saímos à uma, debaixo de um sol que fazia pouco de nós, pelo caminho que parte das traseiras dos quartos. A mochila carregada, além da tralha dita normal, com um termo de água gelada para, mais tarde, preparar o tereré. As botas altas de borracha e a fricção das meias na pele a lembrarem que já o dia anterior tinha deixado as suas marcas. Os phones metidos nos ouvidos porque facilitam o esforço de chegar até ao fim do percurso – ou de voltar a casa mais tarde. É que com música vai-se mais leve, absorvido num mundo interior que compete com qualquer outro entretém. E esquecem-se um pouco os tornozelos e os gémeos…

Uma perna atrás da outra, comandadas pelo ritmo invisível, nenhuma delas se importava com as gotas de suor que escorriam da testa. Nem eu me importava muito. As curvas do caminho já me conhecem. As raízes saídas da terra laranja não me fazem mais tropeçar, ainda que as botas resistam com algumas teimosia a ser levantadas do chão – ganham vertigens, diz quem sabe que é coisa normal em calçado.

Assim, passando os quarenta minutos por quinze, chegámos num instante. Cruzámos a pequena ponte de tabuinhas por cima do riacho e, pelo rádio, as moneras da manhã informaram-nos que os macacos se dirigiam para a pequena cortada em que nos encontrávamos. Então sacámos as mochilas das costas e sentámo-nos, atentas, à espera de um salto na vegetação. Muitas vezes é assim, um anúncio de presença num mar de verde. Fixam-se as copas, ouve-se o vento, procura distinguir-se um abanão nas folhas. Dez minutos, quinze, até que, de repente, se avista um que já vem.

Nesse dia lá veio o primeiro, mas logo lhe deu para virar para sul e voltar a desaparecer. A única maneira de seguirmos tal direcção era pelo riacho, já que a água ia baixa e não atingia a altura das botas. Descemos as quatro o pequeno barranco e lá nos enfileirámos, procurando pisar sempre as rochas mais altas. E de princípio tudo bem, controlada a água. Lentamente, ao passo que ela permitia, fomos passando por zonas lindíssimas, uma visão da floresta que normalmente não nos toca ter. Por vezes o riacho alargava-se um pouco e as árvores em cima formavam abóbadas com lianas penduradas, lembravam histórias de “tarzans”, davam-me muita vontade de ter uma câmara à mão. Nesse dia não a levava. No total, e praticamente sem darmos por isso, seguimos dentro de água por três horas. Três divertidas horas. Fora a paisagem, para mim, o momento alto esteve no esforço da Taylor para subir a uma margem – a qual para ser atingida implicava trepar um barranco de barro com um metro de altura – ajudada pela Veronica, que lhe empurrava o rabo, gritando “ahora, ahora, dále Tay!”. Para no fim se estatelarem as duas, como seria de prever, e verem as botas e as calças encher-se de lama e água apodrecida. Depois disso quase valia tudo, ataque de riso generalizado.

Para terminar a aventura, num golpe de autodeterminação típico de mono, o grupo decidiu virar a sul. As moneras que se lixem para sair do rio e abrir caminho à catanada por entre os rebentos do bambu mais irritante do mundo. Muitas canas secas a estalarem debaixo dos pés, o sol directo, a transpiração a escorrer em linha pelas fontes. O desejo de não encontrar uma cobra pelo caminho… Até que, por fim, se avistou uma das fitas coloridas que vamos deixando nos caminhos, para nos guiar. “Laurel, chegámos a Laurel!” A alegria de encontrar um trilho só é comparável à que sentimos ao fim do dia, no regresso a casa, depois de fazer a última curva dos três quilómetros de caminho, naquele momento exacto em que se avista o monte de bromélias que antecede o portão do cies.

Eu gosto de dias assim, com novidades no percurso. Ontem, com a mesma combinação de compañeras, descobrimos um bambu novo (mas dos grandes, aqueles onde os monitos dormem e de que se alimentavam antes de começarem a secar) quase a cair para o Iguazú. Foi dificíl chegar, uma visão inesperada mas, não há que negar, uma paisagem brutal junto ao rio. Voltar a subir, mais uma vez, foi outra conversa. Fomos para oeste. Resolvi seguir um leito de riacho que vai seco por achar que teria menos impedimentos vegetais que a envolvente e – enfim – não é que estivesse enganada mas também não se tratava de uma autoestrada. O problema é que saía connosco, e pela primeira vez durante o calor da tarde, o nosso colega novo, Mike Myers. Sim, é mesmo o nome dele e também é verdade que, por uns dias, houve a expectativa que nos aparecesse o outro mais conhecido Mike Myers no meio da selva argentina (o que seria!), mas não. Infelizmente o Mike não parece estar em forma física, é um chubby de Saint Louis bastante estereotipado como a criança comedora de MacDonald’s toda a vida. Diz que não come vegetais, que não gosta. Só hambúrgueres e frango. Daí que raramente se junte para jantar connosco e, até agora, as suas refeições permaneçam um mistério para os demais. Gatorade, peanut butter à colher e barras de cereais foi tudo o que já o vi beber e comer. É um treino à força, este inicial. E acho que ontem a longa caminhada, seguida de toda uma tarde fora de trilho a descer até ao rio e depois voltar a subir, a modos que o arrasou. A cada passo que dávamos na subida podia ouvi-lo ofegar. Hoje, felizmente, a jefa deu-lhe dia livre para descansar. Só agora me apercebi da resistência que todas acabámos por ganhar ao longo dos meses, caminhar horas seguidas, ficar especada de pescoço torcido a olhar para o alto, subir, descer, trepar, já tudo parece perfeitamente normal. Plantas dos pés insensíveis, músculos feitos pedra ao fim do dia e sorrisos cansados na cara, tudo se pode somar e depois dividir. Todos lá chegaremos.

10 de janeiro de 2009

décimo oitavo

Hoje não me estendo muito mas, como diria a querida Mimi: olha meu amor, não é muito mas é de boa vontade!

Abano-me na cama de rede mais afastada da cozinha. O caderno dobrado no colo, a transpiração eterna na pele e, do rádio, uma alternância entre reggaeton e qualquer pirosada latino-romântica. Tudo está calmo. Uma cose a roupa destroçada pelo campo, outra olha o guia ornitológico da América do Sul como quem pensa em tudo menos aves. Na outra rede, uma terceira esparrama-se lendo Harry Potter e esforçando-se por não mexer um músculo. Qualquer coisa faz aquecer. No ar também não se sentem movimentos. Do cimo do telhado levantam-se ondas bruxuleantes, quase invisíveis, que me recordam por que já não aparecem por aqui os macacos. O reggaeton segue com o batuque a volume moderado. Alguns dos vizinho lagartos, de impressionante tamanho, serpenteiam devagar pelo jardim. Assim é este momento.

Fala-se de como a influência dos jesuítas em certa região da Bolívia fez manter, até hoje, uma tradição de música barroca com instrumentos criados pelos indígenas. Algo com o toque de estranheza que sempre têm as misturas – pelo menos à primeira vista. Mas, na verdade, o que é que com o tempo não se mistura? Guiada por Martin Page aprendi recentemente que as navegações portuguesas abriram em par as portas ao comércio internacional. Pode parecer básico, algo que me devia ter ficado da escola, mas a verdade é que só agora se pinta o quadro geral – ou talvez me dedique pela primeira vez a pensar o assunto em vez de decorar as frases dos livros para os testes. O caril da Índia possível por se terem levado picantes da América do Sul, o hábito do chá com bolos às cinco da tarde instituído por Catarina de Bragança na corte inglesa (chá esse vindo da China, de caravela, até Lisboa), tempura como técnica de cozinhar ensinada no Japão pelos portugueses. Tudo “very typical”. Tudo, apenas, exemplos de misturas. Para não falar em povos ibéricos, celtas, mouros e romanos. Sinto-me esmagada com tanto que temos, todos, para trás.

Os dias aqui já se sentem um pouco mais curtos. Em vez de sair às cinco e quarenta da manhã, já saímos às seis. Sim, grande alegria! Até a caminhada se faz mais animada. É interessante ver também as árvores de fruto de que se alimentam os macacos a serem substituídas umas pelas outras, à medida que eles (os frutos) amadurecem e secam. As diferentes áreas que os bichos vão preferindo em função disto mesmo. E o como agora passam tardes inteiras junto ao rio para se refrescarem com o ar menos quente. Gosto de ver o tempo a passar.

A este ponto já quase todos regressámos ao CIES. Turnos para cozinhar, para lavar, para usar o modem, acabaram-se as férias! Em breve, seguramente, se organizará o primeiro asado de 2009 e começa a avistar-se, ainda que, por enquanto, ao longe, o tempo de algumas despedidas. Porque gente vai, gente vem, é assim mesmo.

Tenho-me entretido também, sempre que posso, a filmar os macacos com uma câmara que trouxe de Lisboa. Com muita falta de arte, diga-se, mas lá vou tentando perceber como se faz a coisa. Quando souber como – e tiver tempo de antena na internet para tal – tento deixar aqui um vídeo.

Agora, como estou de folga, acho que vou ali dar um passeio às cataratas, que ainda as não vi desde que voltei e o tempo já se pôs bonito depois da tormenta de ontem.

¡hasta pronto!

5 de janeiro de 2009

décimo sétimo

nota: alguns problemas internéticos obrigaram-me a escrever este post num ponto de internet na vila, pelo que nao encontrei, no teclado, o til e o cê cedilhado; as minhas desculpas se tal dificultar a leitura (embora eu saiba que o leitor é versátil e deve bastante ao trabalho neuronal); assim que puder, corrijo-o no meu próprio computador; ¡saludos!

A Argentina recebeu-me fresca e muito tranquila. Esperava o calor irrespirável que fazia quando a deixei e, em vez disso, fui recebida com um suave tempo de primavera. Nem as cigaras se davam ao trabalho, na noite em que cheguei, de camisola ainda vestida. Nessa frescura da madrugada, o CIES escuro e quase vazio, silencioso, cheirei de novo este lugar. Está diferente. Perguntei à Jen. Nao achas que está diferente? Encolheu-me os ombros, disse que havia chovido muito nos dias anteriores. E que o seu nariz nao era bom. Tenho a certeza que está diferente.

Continua a surpreender-me como, vinda do Brasil, me sinto em casa deste lado da fronteira, onde se fala uma língua que nao é minha.
No aviao que me transportou do Rio de Janeiro para a Foz do Iguacu, calhou ficar sentada ao lado da única argentina do vôo. Que respirava com dificuldade, escondia a cara entre as maos e tremia muito. Até entao nao a sabia argentina, mas quando me agradeceu o copo de agua que lhe fui buscar com um atrapalhado “gracias”, foi quase como se me tivesse dito obrigada. Tive de imediato aquela sensacao que se tem ao encontrar um português no estrangeiro, esse saber que se partilha algo – nem que seja, neste caso, que a outra pessoa nao vai fazer caretas ao tomar mate (como verifiquei acontecer em cem por cento dos casos em casa).

Sós argentina? No, soy portuguesa. Ah... yo vivo en España hace veinte años. E assim comecaram três horas de conversa com a Iris, uma cinquentona a quem, passada a crise de claustrofobia, nao faltava boa disposicao. Falou-me da familia, dos amigos, das saudades que sente do seu país e, também, da Galiza que muito admira e visita. De Madrid, onde vive, nao gosta. Uma cidade grande é sempre uma cidade grande.

Dei-me conta que ambas falávamos um misto de "espanhol" e "argentino", mas que esse intermédio nao se assemelhava entre si. Eu nao conheco expressoes espanholas, uso as argentinas numa entoacao mais neutra. Ela falava com o encantador cantar argentino, mas soltava exclamacoes que aqui nunca oico. A cada "joder" eu até estremecia! Teve piada. Às tantas, virou para mim a capa do livro que levava no colo. A psiquiatria do pânico - truques para superar. Franziu o nariz e, em jeito de segredo, sussurrou: nao funciona.

No dia seguinte já as quatro caminhávamos floresta afora, em busca do grupo "Silver". Entardecia e a vontade era mais de conversar que de ser monera. Mas lá os encontrámos. E continuou-me a parecer que as coisas estavam diferentes. Nao havia mosquitos. Nao transpirávamos. Tudo cheirava maravilhosamente a madeira (há uma certa árvore que cuja casca tem um cheiro a dociado a flores) e, por vezes, à planta que tem odor a limao. Reapareceram alguns fungos. E a luz do entardecer está magnífica - ou talvez tenham sido os dez dias de inverno europeu que me alteraram os sentidos.

Além de tudo isto, passa-se que há vento. Aqui, normalmente, só há vento quando há tormenta e é daquele género que faz o mundo vir abaixo, as árvores dobrar-se até ao limite e, embora seja também fantástico, é muito difícil de disfrutar de dentro de casa. Assim, este novo tipo de vento, mais familiar, é uma boa surpresa. Tem laivos dos dias em que Portugal comeca a aquecer e nao podia cair melhor para rematar o meu curto inverno.

Trouxe vinho do porto para todas, "O Papalagui" para a Mica e uma pilha de outros livros para mim. Sei que a Clara trará filmes novos. Troquei também alguma roupa e passeio-me agora com modelitos que fogem às três toilettes anteriores. Dizem-me que é estranho. E trouxe fado, a pedido (obrigada Joao), bem como música pimba (sim, nao é mentira, foi-me pedida música pimba!). Cultura nao discriminatória e seu transporte além-mar, à boa maneira portuguesa.

O que me custa? As saudades de todos. Mais uma despedida, mais algumas caras compridas - embora menos lágrimas desta vez. Nao estar para assistir à tal primavera. Nao poder ver o mar quando quero. Perder bons filmes nos cinemas e aniversários a tempo e horas. Que nao seja época de laranjas e tangerinas aqui. Que o lume nao sirva para aquecer mas sim, apenas, para cozinhar carne. Apesar de tudo, uma conclusao tiro da minha estadia em Lisboa: adoro a minha casa, adoro estar à distância de um "vem cá ter", mas a cidade nao me trata bem. É intensa demais, agressiva de mais, impessoal demais. Falta-lhe tempo para ter tempo.

Chegada ao parque, respirei fundo e tranquilizei-me.

3 de janeiro de 2009

[comentário quase nada]

Bem, estou de volta.

Passou o interregno natalício, a curta luz de Lisboa no inverno e a estranha sensação de retornada.

Entrámos em 2009. Um feliz, a todos! :)

Amanha já cá volto para dizer coisas...