8 de setembro de 2008

quarto


Nunca antes na minha vida tinha regularmente começado a fazer o que quer que fosse às seis da manhã. Riam-se os insensíveis que podem, é mesmo verdade. O despertador toca às cinco e meia em ponto. Estranhamente, como já desde antes de viajar andava sem sono, tem custado pouco. Percebo que afinal umas seis horas diárias são suficientes para descansar. Bizarro! Ao fim de apenas uma semana de campo intensivo (e adiante já vão ler o intensivo que realmente é) começa a fazer-me confusão a quantidade de horas de luz que costumava perder pela manhã. Ou o facto de não ver o sol surgir e falhar encontrar a o mundo a acordar. Os sons na floresta, todos os cantos das aves, os movimentos na folhagem, os feixes de luz a entrar através dos buracos que ela deixa... A neblina a descolar-se com lentidão. Não há margem para dúvidas, são momentos especiais, os amanheceres.

Para acompanhar os macacos é preciso encontrá-los na zona em que passaram a noite, antes de se porem em movimento, e é por isso que acordamos ainda de noite. A vestimenta-campo varia consoante a temperatura mas inclui sempre meias para caminhada, calças de secagem rápida, qualquer coisa de mangas compridas por causa dos mosquitos, e galochas. Nos últimos dois dias tem estado um gelo de morte. O clima aqui é incrível! O primeiro dia em que fomos realmente para o campo parecia um inferno. O simples facto de vestir uma camisa em cima da t-shirt deixava-me o corpo a assar e a pele a transpirar. Os óculos embaciavam. A respiração ficava doida à mais pequena subida. Pensei que não era talhada para estas coisas. Entretanto refrescou um pouco, o dia seguinte correu bem melhor a todas nós e lá demos uma segunda hipótese à coisa. Depois veio um dia de chuva e algum frio, um de muito, muito frio e esta manhã, que foi de gelo absoluto. Não estou a exagerar nem um bocadinho, esta amanhã havia geada lá fora. Geada! Quando saímos às seis horas – eu, que não trouxe casaco quente, com um montão de camisolas e camisas enfiadas cabeça abaixo para ver se atingia o “estado cebola” – o ar cortava-se às postas. Senti-me em Andorra, preparando-me para a primeira subida da montanha, só que sem o equipamento necessário. As mãos um bloco de pedra, sem mobilidade, quase a partir. A desgraçada da Mica, uma das minhas colegas, foi-se meter num trilho para espreitar o bambu onde achávamos que os bichos podiam estar e ficou rodeada por uma nuvem espessa que subia a encosta. Enfim. Estaria tudo muito bem no Gerês, mas no Iguazu?? Finalmente, esta tarde, o sol apareceu de novo. Não que tenha ficado calor, mas ao menos descongelámos um bocado. Já não posso olhar para o polar da CM, a long sleave e a camisa de flanela, que são os elementos de vestuário mais quentes que tenho e que, como devem imaginar, já têm pernas e ganharam vida!

Em havendo tempo, pela manhã, comemos qualquer coisa na cozinha comum. Em silêncio, que a essas horas ninguém em seu perfeito juízo pode falar! Tenho conseguido atirar à pressa uma fatia de queijo para dentro de um pedaço de pão, olhado o nível de água na camel back e agarrado ainda uma barrita de cereais. Uma maçã, quando as há.

Saímos a passo despachado. Com o frio que tem estado, largamos vapor e tiritamos durante dez minutos até aquecermos. É preciso percorrer alguns trilhos e atingir o dormitório dos animais assim que possível. Há dormitórios em sítios bastante acessíveis, aqueles em que nos basta seguir os caminhos feitos para os visitantes irem às cataratas e desviar para a floresta apenas por uns cinquenta metros. E depois há os outros dormitórios, uns delirantes locais em que os joelhos são obrigados a amortecer em contínuo e as mãos se esforçam para não agarrar todo e qualquer raminho que passe ao alcance ocular. É num desses sítios que se vê o melhor amanhecer, pois claro, mas é preciso uma certa dose de boa vontade para lá chegar. Bem, é mais um imperativo para quem quer controlar o movimento dos animais. Do ponto elevado de que falo, a que chamaram com originalidade “the mirador” (a imaginar com pronúncia americana!), consegue ver-se uma brutal curva do rio, a pequena e inacessível praia que o lado de cá alberga, a encosta que se ergue no lado brasileiro e os contornos das suas árvores e, acima, os tons rosa e dourados do sol que chega.

Depois a floresta tem daquelas coisas giras: ramos, lianas, lama… Um tralho por dia dá saúde e faz crescer, não é assim? Acho mesmo que a média não está nada má. Sendo que apenas numa das vezes me magooei, ainda melhor. Também agradável é levar com as teias de aranha na cara. Ou melhor, ir com a cara contra as teias – sejamos justos. É um mimo, hoje devo ter comido teia lá para cinco vezes! Terá nutrientes úteis? Espero que sim, já que estraguei o ganha-pão da pobre criatura. Chegar a casa e descobrir que uns ácarozinhos decidiram fazer uma festa nas nossas virilhas e barriga também tem o seu quê. Bem bom. “Bichos colorados” como lhes chamam aqui. Nada de grave, acontece a todos e resulta numas babas que duram quinze dias. Tudo seja assim simples e indolor e dar-me-ei por contente.

Adiante, tenho-me sentido super bem neste papel de investigadora de campo. Bom, por enquanto sou mais pessoa-autorizada-a-andar-por-todo-o lado-e-a-seguir-os-monitos-mas-que-se-perde-que-nem-uma-tonta. Faz parte. Terei que dar algum crédito a mim mesma, dado que é o quarto dia em que saio para o campo. A área não é muito grande mas verdadeiramente confusa. O mapa que temos é imperfeito e conto que, com o tempo, seja mais mental do que outra coisa. Así que no está tan mal. Não sou muito desorientada, não me stresso quando me perco e, de uma maneira ou de outra, todos os caminhos acabam por ir dar a Roma [no caso, ao Sheraton].

Agora aquilo que eu ando - senhores! - aquilo que eu ando… O plano é que duas pessoas trabalhem das seis ao meio-dia e outras duas do meio-dia às seis. Mais coisa, menos coisa. Só que, por enquanto, temos que aprender e praticar tudo. Andar na floresta, conhecer os caminhos, saber acompanhar os macacos sem os perder, saber que direcções tomam, identificar os indivíduos do grupo que vamos estudar agora (pfff… são só vinte e seis, coisa pouca!), estudar a lista de comportamentos… Então, por tudo isto, temos andado no campo oito a dez horas seguidas, o que é dose. No fim já ninguém quer saber dos macacos, é tal o desespero por comida e por pés para cima. Chegamos ao centro à tarde tipo zombies. Mas vale a pena. É fabuloso estar no meio dos animais, vê-los andar por ali, fazer uma data de coisas, estar, verdadeiramente, no seu mundo. Ver como é. Eles estão muito habituados a ter investigadores à perna e já não ligam. Podemos estar a três metros que eles não reagem. Mas é raro acontecer tê-los tão perto. Vai ser engraçado andar no meio do mato, de gravador em punho, a olhar para o ar. Porque essa é outra, passamos o dia a olhar para cima, onde os macacos se deslocam. Mas são coisas que só custam de início, acho que já tenho os músculos do pescoço habituados. Na verdade (e isto acho muito giro), tenho os sentidos todos a tornar-se mais refinados. Ou talvez especificamente adaptados ao novo espaço que ocupo, ao que passo mais tempo a fazer. Tenho os olhos e os ouvidos em “modo macaco”: ouvem restolhar ao longe, vocalizações ligeiras, vêem movimentos subtis e ainda só passou uma semana. Uma semana! Parece-me que passou um mês… Nunca me tinha sentido tão entregue a um trabalho. Afinal talvez seja talhada para o dito.

10 comentários:

Aline Cortez disse...

Posso imaginar-te tipo David Attenbourg (é assim que se escreve ??) mas não na versão Herman José. Como tua Mãe ficava mais tranquila se estivesses num estúdio de gravação.
A tal Annie é uma esclavagista: das 6 às 6 e no fim só uma ração de arroz !!! A roda dos alimentos na América tem umas diferenças da que é estudada na UE.
Diz à Annie para amanhã ir pescar uns achegãs enquanto vocês trabalham. Como és "uma querida" até a ensinas a fazer escalados.
Fixe ?!
Agora a sério não será melhor ir uma encomenda com as velharias do ski que para cá existem ? Luvas, bufos, meias, cachecóis, tapa orelhas (os do pom pom branco tipo rabo de coelho), aqueles dos guizinhos de Carnaval. Os monos iam adorar.
Diz à Annie que pode começar a praticar a pesca do achegã que tu forneces o "tintol" (irá na encomenda com os tapa orelhas).
Bem, eu por cá vou treinar a observação de gatos. É quase tão cansativa como essa, mas permite ficar no sofá de perna estendida. A Salomé manda bjs à Tia kida.
Mil bjs meus

C.M. disse...

Olarilas, pareces mesmo muito bem talhadita para o dito, cansada mas satisfeita:-)
Fico muito contente por saber que a camisolita já é quase uma criatura com vida! Face ao triste destino que lhe estava guardado (ser camisola de cidade e passar a maior parte do tempo confinada a um armário) calculo que ela esteja também muito satisfeita.
Ao ler o teu post dei comigo a pensar no "embrutecimento" dos sentidos que a urbanidade implica.
Nesse sítio onde te encontras a ausência do ruído de fundo permite ouvir o silêncios da natureza!
Calculo que dentro de algum tempo, quando fores promovida a pessoa -que-pode-andar-por-todo-o-lado-atrás-dos-monitos-e-já-conhece-os-trilhos-todos-e-dá-poucos-tralhos, vais precisar de dormir umas horitas seguidas:-)
Beijinhos, logo voltarei, ahora hay que trabahar

ttk disse...

humm,deixa cá ver!!!
como titio preocupado com o teu bem estar e conforto,sugiro-te que as tuas deslocações passem a ser feitas no "sendero verde", que como já deves ter visto é aquele combóiozinho verde parecido com o do nosso zoo...
Tenho estado aqui a controlar-me (a mim e às saudades),e ainda não te telefonei.
É um teste á minha resistência...e sentir saudades é bom !
Pensa-se mais no outro(a).
Tempos houve,quando paravas ainda por estas bandas,que ficavamos muito mais tempo sem saber um do outro, e lá por isso eu não pensava em ti todos os dias.
Agora vê lá que me lembro de ti todos os dias,minha parvalhona !!!
Mas que estou quase a telefonar,ai estou,estou.
E estou também em estado de CHOQUE...
Vi imagens do Sheraton !
Que MERDA É AQUELA ??
Como é possivel? Além de tudo mais o palhaço do arquitecto não teve a minima preocupação de integrar aquilo com um tipo de construção mais adequada ao efeito.
É forte e feio...

Já agora aproveito para dizer:
-c.m.,pára lá de chamar larilas á investigadora.

Até que ela se tem portado como um "homenzinho". ;)

Beijocas
Manel

Micas ...que não a gata disse...

Hola, que tal, Saroca??
Estou a imaginar-te com estalactites penduradas do nariz (tipo Aline na neve, lembras-te??) Que maravilha isso deve ser!!
Sabes, é pena não haver máquinas que gravem ao mesmo tempo que vês , o silêncio do amanhecer com os sons dos animais, por isso fofinha grava tudo isso muito bem nos teus neurónios e deita cá pra fora por esta via...!

tou preocupada... com as tuas camisolas, já andam?

E aqui do betão cinzento e mal cheiroso um grande bêjo para a macaquinha corajosa algures na selva!!!!!"

calvinn disse...

8 da manhã. Fila à saída de Massamá, um Símio qualquer, decidiu que a sua viatura, era capaz de passar por cima do separador central. Deu-se mal. Para além de não ter conseguido, ainda foi autuado por outros Simios de espécie rival. Esbracejou , num qualquer ritual de acasalamento mas ninguém do seu clã quis alinhar na brincadeira.Eu da tribo dos observadores citadinos, procurei desvendar o que estaria por detrás de tão idiota dança. Desconheci. Não pude registar a acção propriamente dita, nem consegui tirar notas, sinto-me um novato, nestas observações. Esta em particular demorou cerca de meia hora. Outras observações houve ao longo do dia. Fui visitar o Zoo De Lisboa onde grandes grupos de macacos e macacas lutavam e esperavam pela sua vez de lutar....a loja do cidadão é uma imensa selva onde sem querer, nos perdemos em anotações e risos contidos. Sendo tu uma Observadora qualificada ficarias pasmada, com tamanha brutalidade . Dava quase para elaborar uma tese baseada no comportamento destes tão interessantes animaiszinhos . Fica aqui só mais uma nota. Demorei uma hora da loja do cidadão até ao Colombo. Qual caminhada infernal, não havia mosquitos, não tivemos de subir a nenhum morro para nos orientarmos e as reservas de água esgotaram em pouco tempo, não havia árvores enormes e nevoeiro , nem vê-lo. Silencio? hahaha claro que não. Parece que um primo do primata de manhã conseguiu acasalar com a sobrinha do chefe do clã vizinho e ali ficamos todos paradinhos na nossa selva . Cada um tem a sua. E assim ACONTECE na selva:)

p.s. as fotos...bom souberam a pouco como deves de calcular:)
p.s.1 festa nas verilhas...credo:)
p.s.2 suas coléguinhas di trabálho si tão portando bêm cum sÊ? Espero que sim.
p.s.3 será que da para enviares um frasco com ar puro aqui para Portugal?

atentamente calvinn
beijinhos

sara disse...

Nao se preocupem, o frio ja passou. Este sitio eh mesmo inacreditavel. Hoje foi de novo um forno. Nem quero imaginar o que vai acontecer la para Janeiro com os prometidos 40 graus! Enfim...

TENHO COMIDO BEM. TENHO ARRANHOES E BABAS MAS TOU VIVA!! :D

E quem nao se lembra das estalactites da marili? Inolvidavel, no minimo. (e por falar em olvidar, ca vou melhorando o meu castelhano, embora com um sotaque bem diferente)

ttk, ainda nao tenho numero argentino. Ou melhor, ja tenho o chip mas ainda n csgui perceber como se liga dai para ca. Qdo souber mando mail a informar. Vai ser um prazer ouvir-vos! Ontem andei a "mostrar-vos" todos aqui ao pessoal. Dizem que sou parecida com a mana (obvio), a mae (eh la!) e que tambem me encontram semelhancas com a mia (isto eh que um mix genetico, ah?). E qto ao sheraton olha, nem faco comentarios... um mamarracho mesmo!
cm, o polar esta definitivamente nas suas 7 quintas. Eternamente agradecida, nem imaginas!
calvinn, adorei a descricao. Eh TAO bom nao estar na selva de betao! Ainda nao tenho mais fotos, n tenho tido tempo. E sim, as coilegas sao mto porreiras, especialmente a argentina.

bjs a todos

Aline Cortez disse...

Desde já peço desculpa à Sara de utilizar o seu veiculo para me dirigir a alguém que não ela.

Micas

Estalactites !!??

E as estalagmites ? !!

Mas eu, estava no cume da montanha a 4000 metros de altitude... e não TE vi por lá ! !!! Parece que afinal as compañeras from States e South America têm alguma (pouca, claro !) razão, ela é um bocadinho parecida com a Mãe.

Desculpa lá o mau geito Sarokita !!! Não foi por mal. Até porque como foste a primeira cria tinha dado geito seres mais parecida com a Mia.

Para o Calvin: óptimo !!!

Pronto Sara. Não torno a falar com os outros. Prometo ! Mas as estalactites foi demais !!!

Bjs

C.M. disse...

Olá miúda, espero que continue tudo a correr nos conformes (ou seja muito trilho, pouco tralho e muchos monitos para observar).
Por aqui:
Ontem houve um jogo de bola no qual os dignos representantes deste cantinho à beira mar plantado perderam apesar de terem jogado bem (sic, alguém que viu o jogo que não eu),
O establecimento escolar que a minha filha frequenta, e agora pasma...vai entrar em obras!!! mas...não sem que isso atrase o inicio das aulas e o próximo ano lectivo seja passado no contentor (ufff,que alivio)
Como é bom de ver continuamos a habitar no paraíso do tuga e esta espécie acho que merecia mais estudos observacionais, Calvinn já começou, e bem, espero que não desista.
E usando indevidamente este espaço,
ttk - embirra não, tá?
Beijocas

Unknown disse...

Alô Pima!!!
Foste embora há tão pouco tempo e pelas tuas histórias parece que já estás aí há “uma década”! Estou a adorar ler as tuas descrições e como alguém já o disse aqui...também eu sinto que estive em S. Paulo e agora no Iguazu. Desculpa ainda não ter comentado nada antes mas só agora consegui parar em casa um bocadinho para te dedicar um bocadinho de atenção. Em relação à descrição da bicharada toda que por aí anda, como deves calcular não é propriamente o que mais me atrai (lol), mas ao ler as tuas descrições e a emoção com que as contas, percebo que estás mesmo no TEU MUNDO! :) E como eu um dia destes comentava... “não se preocupem porque n ter o conforto da casinha dos pais, caminha lavada com lençóis macios, comida na mesa sempre que quiser, levantar cedo e apanhar um frio de morte...tudo isso passa completamente para segundo plano quando há uma selva imensa para visitar lá fora, com uma imensidão de seres para ver e apreciar.” Isso sim é o que realmente importa não é Pimoca? :) Espero que estejas bem e que vivas essa aventura que bem mereces! :) Como já disseram aqui também...repito que as fotos souberam a pouco! Queremos mais...:)
Continua a dar notícias e nós por cá tb vamos dando (se bem que a emoção não será tanta aqui pela cidade como aí no campo!)

Beijocas grandes com saudades...
Pima

P.S. 1– eu bem disse que não irias conseguir evitar a carne!!! LOL
P.S. 2 – os meus planos de te visitar continuam de pé! Agora ainda com mais vontade! ;)
P.S.3 – tb quero ver fotos dos argentinos “guapos”! :D

Jose Ruah disse...

Não tenho o prazer de a conhecer tal como os demais comentadores, todavia desejo-lhe as maiores venturas neste seu empreendimento.

Posso garantir-lhe que serei leitor assiduo deste espaço, como aliás era ( e espero continuar a ser) do anterior.