11 de outubro de 2008

nôno

Quase cem por cento de Puerto Iguazu vive do turismo, disse-me um guia. Na altura achei exagero, mas agora que já dei umas quantas voltas pela cidade, acredito que seja verdade. Restaurantes, lojecas, pontos de internet, agências de turismo, supermercados com preços para turista, vendedores de rua, hotéis e pousadas, inúmeras empresas a explorar as camionetas que vão e vêm das cataratas… Não há espaço para mais. Não me parece que se produza ou fabrique o que quer que seja.

Tirando o facto de ser um lugar pacato e rodeado de verde, a grande diferença que noto entre Puerto Iguazu e as cidades europeias que conheço é que, aqui, tudo parece velho. Os carros, as ruas, os edifícios… Até construções que sei serem recentes, como o terminal rodoviário e alguns hotéis pelo caminho, ganham um distinto ar anos sessenta quando atento neles. Os próprios autocarros que circulam no centro me transportam directamente àquela série portuguesa em que a Rita Blanco se veste e penteia como a minha avó nas fotografias antigas. Desta sensação, o exemplo mais flagrante que tenho é o do hospital. Hospital Dr.ª Marta Shwartz [há também à escolha, na versão “Marta Shwartz”, um museu, uma rua e uma placa onde se caracteriza a senhora como “el angelito de Puerto Iguazu”]. Bom, mas o hospital é algo digno de ver e reconhecer que, por muito que nos queixemos, temos em Portugal um privilegiado (ainda que burocrático e desorganizado) sistema de saúde. Com listas de espera e tudo – e atenção que acho bem que o critiquemos! Nada daquilo a que estamos habituados nos prepara para uma América do sul. Pelo menos não a mim, que ando sempre meio distraída.

Na sala de espera, cores alternantes entre o creme e o castanho vão sendo descascadas da parede, lenta e seguramente pela erosão. Posters alusivos a cuidados de saúde, meio rasgados e amarelecidos pelo tempo, tentam em vão cumprir uma função apelativa. As cadeiras em que nos sentamos são mais anos oitenta, pois que, de repente, me lembram compras no “Pão de Açúcar” da Avenida Estados Unidos da América, ainda pela mão dos progenitores, vai agora para uns quinhentos anos. Plásticas, quebradiças e com a mesma duvidosa cor acastanhada. Rangem as dores dos pacientes que se movem, incómodos, enquanto esperam. E a espera? Essa sim, é-nos bastante familiar. Corredores carregados de gente que se encosta, se abana e se impacienta (não era suposto, por definição, serem pacientes?). Gente que cheira a gente debaixo do calor subtropical. Portas anos sessenta que dão para gabinetes anos sessenta. Gordinhas de óculos na ponta de nariz, na recepção, que nos informam que a senhorita Reyna ainda não chegou mas que podemos entrar e esperar em tal sala, quando tal sala acaba por ser o gabinete onde atende, cheio de utensílios médicos à mão de semear. Enfermeiros que dão injecções sem luvas. Casas-de-banho sujas onde tudo parece ter sido deixado a meio: há lugar marcada na parede para um espelho, para uma saboneteira, mas não os encontramos em lugar algum; a tampa do autoclismo também decidiu migrar para parte incerta. Resta-nos o papel higiénico e agradecemos por isso.

E antes que se apoquentem os familiares mais apoquentativos, calma!, fui apenas ver de umas bolhas que me apareceram na pele, provocadas por qualquer substância na floresta. Xixi de aranha ou planta urticante, quiçá. Reacção alérgica de branco em terra de índio, por certo. Um creme e já está a passar.

Como terão reparado visitantes mais assíduos, os últimos dias foram menos propícios ao relato, esse registo. Senti-me cansada, dormi sempre que tive oportunidade e havia uma dorzita de cabeça que não queria abandonar-me. Ligeira mas presente.

Para mudar de ares fui até Tres Fronteras. Na ponta da cidade, é um miradouro de onde se observa a junção dos rios Iguaçu e Paraná. À esquerda estende-se o Paraguai, em frente o Brasil.
Ao contrário do que esperava, encontrei poucos turistas no alto, junto ao marco com as cores argentinas e os quiosques de artesanato. Deixei-me ficar um bocado a olhar os rios. Soprava uma aragem a que quase se podia chamar vento. Mal, mas podia. E quando corre o vento as ideias também voam. Observei as minhas deslizar encosta abaixo, por cima das copas que ondulavam, sobre as folhas tenras de verde, e vi como rodopiavam pelo caminho. Iam tranquilas e contentes. A primeira, orgulhosa de o ser, era a ideia das americanas reunidas à volta do computador assistindo aos debates políticos, do quanto se inquietam com a nacionalização dos bancos e do que tremem à simples menção de termos como “comunitário” e “social”. Quase soltei uma gargalhada ao vê-la assim, tão gorda e inchada ideia, aos rebolões a caminho do rio. [rio que vai castanho; rio de dulce de leche, ocorre-me; corre e mimetiza os sulcos que deixamos no doce quando lhe passamos a colher] Seguiu-se a mais leve, luminosa ideia do novo bebé do grupo, nascido há quatro dias da macaca Kika. Uma lagarta com pêlo e cara enrugada que ela leva no dorso, à volta do pescoço, qual criminosa estola de vison. O grupo todo anda em adoração à cria.

Mais cinzentona e arrastando os pés, apareceu então a ideia número três. Falou-me da chuva incessante, apresentou estatísticas, previsões, ameaças! Ilustrou a sua palestra com imagens dos trilhos da zona oeste inundados e de uma Sara parando a cada dez metros para despejar a água de dentro das galochas. Fiz que não vi. Atrás desta ideia, adivinhei uns pequeninos olhos tímidos que buscavam passar despercebidos. Estiquei-me, espreitei, e lá estava uma quarta existência: o cansaço, agrilhoado, coitado. Logo atrás, no entanto, espicaçava-o, contente e aos pinotes, a ideia do cheiro a Primavera. Vinha colorida, sorridente e era a única que verdadeiramente flutuava – ainda que argentina, consegui reconhecer-lhe a face num dia fresco de aragem como aquele.

Depois, afastada para marcar a sua importância, e silenciosa como a noite, vinha a leitura, a fechar o cortejo. Em passo lento, com olhos perdidos e sem precisar de ponto, declamava para dentro. Murmurava. Que dizia? Tudo aquilo que naturalmente já sabemos, mas de um modo que se me colou ao crânio para não mais sair. O de Cortázar.

9 comentários:

Aline Cortez disse...

Como sabia que ias "postar" algo ontem antes de ir dormir vim espreitar. Com o avançado da hora as minhas ideias não vinham, nem flutuavam, nem estavam sorridentes, nem inchadas, simplesmente tentavam existir. Mas a baralhação era muita ! E quedei-me no final. O de Cortázar.....
E pensei a Sara escreveu mal Cortez. Ela estava a pensar naquela conjunta de pessoas que dão alegria à sua existência.... os Cortezes.
Todos juntos na Epifânio Dias.
Mas não batia certo !
Fui para a cama a pensar cá com os meus botões mas o que partilhei foi o "Pingo Doce" de há quinhentos anos. Até ficámos a ver-vos penduradas numas grades da entrada.
Agora que o tico e o teco já acordaram fui googlar.. O jogo da amarelinha ?
Besos de tu Madre

Aziz disse...

Confesso que tambem me perco com as referencias literarias.
"...sem precisar de ponto...", o Cortazar escreve sem pontos? tipo Saramago?
Tou a ver que tenho de começar a ler (mais?) livros!

P.S: Pingo Doce ou Pao de Acucar, em que ficamos?

C.M. disse...

Olá,
Mais um post bem desenhado e cheio de ideias com vida:-)
A tua observação permitiu-me até dar algum valor à nossa pseudo civilidade desorganizada!
A descrição do hospital não é muito diferente do que eram alguns dos nossos hospitais há 20 anos (he lá, tou mesmo a ficar idosa!)
Calculei que estivesses a entrar na fase em que o cansaço começa a tomar conta, e o sono a precisar de ser reposto. A "dívida de sono" existe mesmo e há um dia em que começa a exigir ser paga.
Espero que a alergia de branco em terra de índio não te apoquente muito mais tempo.
Gostei das ideias que te caíram encosta abaixo. A descrição da preocupação americana com a crise económica começa também a ser familiar por estes lados, por aqui talvez não tão gorda e inchada, mas igualmente tremelicante com algumas palavritas.
Well, keep us posted, and get some rest.
Beijo
PS: Já sabes fazer o dulce de leche?

Aline Cortez disse...

Há quinhentos anos o Pingo Doce da Av.EUA era efectivamente Pão de Açúcar.
Bjs aos Cortezes ausente do rectângulo

sara disse...

alinita,
de facto, Cortázar e não Cortezes (embora também esses me tenham marcado o cérebro!)
de facto, Pão de Açucar e não Pingo Doce.
:) E em português de Portugal, na óptima tradução de Alberto Simões (aproveito e faço-lhe publicidade!), "Rayuela - O jogo do mundo". Mas o que leio agora são contos.
bacci

aziz,
thanks por comentares, é bom o feedback! já agora, o que quer dizer "aziz"?
quando falei de pontos era em referência ao teatro, àquelas ajudas sussurrantes para quem se esquece do texto. :)
bjocas

c.m.,
acabou de me ocorrer que será teu "cumpleaños" por esta altura! ou já foi?.... não estou segura do dia. (vergonha)
A teoria do dulce de leche é açucar + leite + lume + muita paciência para ir mexendo. A falta de prática obrigar-me-á a comprar uns frasquinhos para levar ao bom povo pelo Natal. ;)
bjs

Unknown disse...

Uns pensamentos de desânimo por vezes só querem dizer que ainda está tudo a trabalhar como deve ser. Acredita em mim quando digo: assim que voltares vais ter saudades disso.

beijos

Aziz disse...

Ahhhh,
Aziz eh o meu apelido em turco, quer dizer "Santo".
Por aqui hah quem me chame de "Polat Aziz" :)
Bjs e parabens para a macaca Kika :)

Unknown disse...

Como vês ainda tens muitos lugares para descobrir!!! e a primavera está a chegar, acabam-se as lamas/chuvadas e que mais....!!! só fica o verdadeiro dulce de leche, que terás de fazer quando voltares.
Cortázar = Cortaessa? se sim parte para essa:)
Bjs gds
Mia

Ines S disse...

vens no Natal!!
que bom. queremos entao doce de leite dai, que eu levo os crepes de Paris! :)
que contos devoras agora? certo é que esse "cortez" cortesao nos da vontade de ir para essas terras, e tambem de conhecer a ginga das cidades por ai. Para quando a tua descriçao das zonas mais urbanas? para quando esse Tango?
Aproveita as ultimas chuvas. Lembra te que sao elas que te vao trazer o esplendor da Primavera!
um beijo e um abraço,
IS