18 de janeiro de 2009

décimo nôno

Naquele dia era dia de nos sentirmos quase exploradoras, quase imagens desenhadas num ecrã, generalização fantástica – fantasiada – de gente que estuda animais na floresta.

Saímos à uma, debaixo de um sol que fazia pouco de nós, pelo caminho que parte das traseiras dos quartos. A mochila carregada, além da tralha dita normal, com um termo de água gelada para, mais tarde, preparar o tereré. As botas altas de borracha e a fricção das meias na pele a lembrarem que já o dia anterior tinha deixado as suas marcas. Os phones metidos nos ouvidos porque facilitam o esforço de chegar até ao fim do percurso – ou de voltar a casa mais tarde. É que com música vai-se mais leve, absorvido num mundo interior que compete com qualquer outro entretém. E esquecem-se um pouco os tornozelos e os gémeos…

Uma perna atrás da outra, comandadas pelo ritmo invisível, nenhuma delas se importava com as gotas de suor que escorriam da testa. Nem eu me importava muito. As curvas do caminho já me conhecem. As raízes saídas da terra laranja não me fazem mais tropeçar, ainda que as botas resistam com algumas teimosia a ser levantadas do chão – ganham vertigens, diz quem sabe que é coisa normal em calçado.

Assim, passando os quarenta minutos por quinze, chegámos num instante. Cruzámos a pequena ponte de tabuinhas por cima do riacho e, pelo rádio, as moneras da manhã informaram-nos que os macacos se dirigiam para a pequena cortada em que nos encontrávamos. Então sacámos as mochilas das costas e sentámo-nos, atentas, à espera de um salto na vegetação. Muitas vezes é assim, um anúncio de presença num mar de verde. Fixam-se as copas, ouve-se o vento, procura distinguir-se um abanão nas folhas. Dez minutos, quinze, até que, de repente, se avista um que já vem.

Nesse dia lá veio o primeiro, mas logo lhe deu para virar para sul e voltar a desaparecer. A única maneira de seguirmos tal direcção era pelo riacho, já que a água ia baixa e não atingia a altura das botas. Descemos as quatro o pequeno barranco e lá nos enfileirámos, procurando pisar sempre as rochas mais altas. E de princípio tudo bem, controlada a água. Lentamente, ao passo que ela permitia, fomos passando por zonas lindíssimas, uma visão da floresta que normalmente não nos toca ter. Por vezes o riacho alargava-se um pouco e as árvores em cima formavam abóbadas com lianas penduradas, lembravam histórias de “tarzans”, davam-me muita vontade de ter uma câmara à mão. Nesse dia não a levava. No total, e praticamente sem darmos por isso, seguimos dentro de água por três horas. Três divertidas horas. Fora a paisagem, para mim, o momento alto esteve no esforço da Taylor para subir a uma margem – a qual para ser atingida implicava trepar um barranco de barro com um metro de altura – ajudada pela Veronica, que lhe empurrava o rabo, gritando “ahora, ahora, dále Tay!”. Para no fim se estatelarem as duas, como seria de prever, e verem as botas e as calças encher-se de lama e água apodrecida. Depois disso quase valia tudo, ataque de riso generalizado.

Para terminar a aventura, num golpe de autodeterminação típico de mono, o grupo decidiu virar a sul. As moneras que se lixem para sair do rio e abrir caminho à catanada por entre os rebentos do bambu mais irritante do mundo. Muitas canas secas a estalarem debaixo dos pés, o sol directo, a transpiração a escorrer em linha pelas fontes. O desejo de não encontrar uma cobra pelo caminho… Até que, por fim, se avistou uma das fitas coloridas que vamos deixando nos caminhos, para nos guiar. “Laurel, chegámos a Laurel!” A alegria de encontrar um trilho só é comparável à que sentimos ao fim do dia, no regresso a casa, depois de fazer a última curva dos três quilómetros de caminho, naquele momento exacto em que se avista o monte de bromélias que antecede o portão do cies.

Eu gosto de dias assim, com novidades no percurso. Ontem, com a mesma combinação de compañeras, descobrimos um bambu novo (mas dos grandes, aqueles onde os monitos dormem e de que se alimentavam antes de começarem a secar) quase a cair para o Iguazú. Foi dificíl chegar, uma visão inesperada mas, não há que negar, uma paisagem brutal junto ao rio. Voltar a subir, mais uma vez, foi outra conversa. Fomos para oeste. Resolvi seguir um leito de riacho que vai seco por achar que teria menos impedimentos vegetais que a envolvente e – enfim – não é que estivesse enganada mas também não se tratava de uma autoestrada. O problema é que saía connosco, e pela primeira vez durante o calor da tarde, o nosso colega novo, Mike Myers. Sim, é mesmo o nome dele e também é verdade que, por uns dias, houve a expectativa que nos aparecesse o outro mais conhecido Mike Myers no meio da selva argentina (o que seria!), mas não. Infelizmente o Mike não parece estar em forma física, é um chubby de Saint Louis bastante estereotipado como a criança comedora de MacDonald’s toda a vida. Diz que não come vegetais, que não gosta. Só hambúrgueres e frango. Daí que raramente se junte para jantar connosco e, até agora, as suas refeições permaneçam um mistério para os demais. Gatorade, peanut butter à colher e barras de cereais foi tudo o que já o vi beber e comer. É um treino à força, este inicial. E acho que ontem a longa caminhada, seguida de toda uma tarde fora de trilho a descer até ao rio e depois voltar a subir, a modos que o arrasou. A cada passo que dávamos na subida podia ouvi-lo ofegar. Hoje, felizmente, a jefa deu-lhe dia livre para descansar. Só agora me apercebi da resistência que todas acabámos por ganhar ao longo dos meses, caminhar horas seguidas, ficar especada de pescoço torcido a olhar para o alto, subir, descer, trepar, já tudo parece perfeitamente normal. Plantas dos pés insensíveis, músculos feitos pedra ao fim do dia e sorrisos cansados na cara, tudo se pode somar e depois dividir. Todos lá chegaremos.

7 comentários:

Aline Cortez disse...

Bem !!! Ai ! Ai !!!
Estava eu a pensar que daqui a dois meses o tal comedor de hambúrgueres, fruto do exercício forçado, talvez possa estar ao estilo de um Brad Pitt, quando, subitamente, a palavra anteriormente lida sem consciência - chubby - teimou em se fazer notar. E lá fui eu, de novo, googlar....
Bem.....bom...se assim é...ao menos ensinem-lhe que é boa educação partilhar a hora da refeição, mesmo comendo iguarias distintas. Em Roma sê romano.
Mas que o entendo quanto aos vegetais, até entendo ! O problema é darem a palavra aos nutricionistas...
Besos de tu vieja para vos e los monitos

Candida Cortez disse...

Os teus relatos que nos ajudam a perceber um pouco o universo em que te moves,nao deixam de me preocupar.Por vezes ate assusta.Mas tambem penso que criaram resistencia as violencias do clima ,do ambiente e do trabalho.E quem corre por gosto........Beijinhos da avo Tlta

Aziz disse...

Pois eh, um universo bem diferente! Mas andam pelo riacho atras dos macaco? ou andam no passeio? Ou os macacos tambem andavam perto do riacho?

calvinn disse...

Ola Sarita, antes de mais nada, UM BOM ANO, sim um pouco atrasado eu sei, mas como vai dizendo o proverbio do povinho, mais vale tarde que nunca. Sendo assim, podíamos estar a 28 de Novembro e desejar um bom ano a todos, seria um comportamento normal? Não sei , mas o povinho é que manda. Hoje lembrei-me de ti e talvez por isso tivesse decidido escrever-te alguma coisa. Tenho lido tudo o que escreves, mas nem sempre me apetece comentar, saber que ás vezes mais vale estar calado do que entrar na onda do chato que diz sempre a mesma coisa.
Lembrei-me de ti porque hoje fui trabalhar ás 6 da manhã, com um tempo Horrível, vento chuva frio e enquanto esperava no descampado da feira de Carcavelos , a ver as árvores lá ao fundo a dançar feitas doidas, e a agua poderosa a inundar todo aquele recinto, lembrei-me que tu estas do outro lado do mundo, num ambiente completamente diferente, Calor Sol, longe de casa, sem vislumbres de uma metrópole no horizonte e a perseguir um sonho. Lembrei-me depois do que estarias a fazer aquela hora. Estarias a chegar a casa, depois de um dia de trabalho, quando a outra metade do mundo , aquela onde me encontro, estava a iniciar o seu dia. E pronto foi isso lembrei-me de ti, lembrei-me de ter ouvido a tua voz, dias antes do Natal , depois lembrei-me de no ano passado ter tido uma noite de bairro alto em que também estavas presente, depois lembrei-me de uma historia com sardinhas e um jogo de Portugal, de um ida ao cinema, e lembrei-me que no fundo não te conheço , mas que te admiro. Posto isto, espero que esteja tudo bem contigo e que estejas a conseguir assimilar tudo o que essa experiência te tem proporcionado.

um beijo grande do Calvinn ou David.
p.s. esse relógio ai à esquerda esta certo? fiquei com a ideia que o fuso horário era diferente.

Unknown disse...

OH Calvin concordo plenamente contigo! Fizeste com que aparecesse 1 lágrima ao canto do olho!!!

Inês disse...

Olá Sara!!! Tudo bem??? Estes meses tenho sido uma leitora atenta do teu blog. Eu e mais uns quantos amigos meus, a quem eu tenho publicitado a tua aventura. É engraçado ver pessoas que nunca te viram, perguntarem e discutirem (no bom sentido)o que tu fizeste naquele dia, é tipo um livro em que as pessoas se entusiasmam e agora querem saber o fim. Inacreditável hj recebi uma msg de alguem a perguntar se tu já tinhas vindo para Portugal, devido a desde do dia 18 já n termos noticias tuas...
Não me posso esquecer daquele jantar em casa do meu pai, nos anos do Zé Maria em que eu e as tuas tias fartamos-nos de rir ctg, acerca desta viagem. Já passou tanto tempo... e parece que foi ontem...
Muitos beijinhos Inês

P.S: Se puderes trás-me um macaquinho!!! Mesmo que vejam a mil cores. Hehehe!!!

sara disse...

ola a todos!

lá estou eu a responder a tarde e más horas... enfim, é o ritmo argentino do dia-a-dia!

aline,
como podes ler no post "vigésimo", o chubbie é tema e personagem idos; por um lado, ainda bem (iria dificultar mais do que ajudar)

avó,
não se assuste, quem corre por gosto aprende-lhe as manhas! estou muito contente e perfeitamente adaptada a esta vida, sinto-me como peixe na água :)

aziz,
aconteceu só que os macacos andavam perto da margem do riacho e era-nos mais fácil segui-los dentro de água; super divertido!

calvinn,
obrigada pelo longo comment. :) Posso imaginar-te a imaginar-me, é engraçado. Por muito tempo imaginei fazer o que faço agora, olhar à volta e não ver edifícios, não respirar fumo, não saltar de café em café, de supermercado em cinema, não repetir conversas sobre vontades sem prazo... Não posso evitar sentir-me um pouco diferente aqui, solta e tranquila. Não dura para sempre, mas enquanto durar estarei para disfrutar.

teresa,
sempre com a lagriminha ao canto do olho... :p um beijinho grande

inês,
com a quantidade de inêses na minha vida demorei um pouco a "localizar-te". Olá!! tudo bem? pois é, também me parece inacreditável que alguém que nao me conhece te pregunte onde ando!! lol... divertido... obrigada por acompanhares. E sim, o tempo passa a correr! ;)
bjocas