6 de abril de 2009

vigésimo sexto

Nao querendo saltar capítulos da história, vou entao terminar de contar Corrientes e os uivadores.

Da EBCo viajámos para a Isla del Cerrito, que nao é uma ilha mas sim uma península e fica já localizada do lado da província de El Chaco. Aí chegados, foi tratamento de luxo para quem faz trabalho de campo: hospedados com um casal que alugava quartos, situaçao muito comum por aqui, nao havia que arrumar nem que cozinhar. Ainda por cima a senhora Gallo vendia comida para fora! Assim, a cada madrugada serviam-nos o pequeno-almoço e entregavam-nos, prontas, as sanduíches para o campo. À noite, pelas nove, entrava o jantar, sempre gordo e bem-vindo.

A colaboraçao do senhor Gallo passava por transportar-nos, na sua caixa aberta, até ao rio todas as manhas – e de volta todas as tardes. Às seis e um quarto, ainda sem sol, lá se ouvia o rodar da igniçao e se apressava o calçar das botas e o preparar da mochila. Os dias já mais frescos pediam algum abrigo a quem se sentava na parte de trás da carrinha. De caminho apanhávamos sempre outro grupo de moneros que dormia noutro lugar mas trabalhava também na isla brasilera – essa sim, um verdadeira ilha, de cerca de trinta hectares.

Atingido o rio, faziamos entao deslizar a canoa pela rampa. A subida a bordo vinha sempre revestida de alguma ansiedade, principalmente por parte dos dois únicos machos presentes. Dificuldades de equilibrio, provocaçoes vindas de terra e material arruinado caso a embarcaçao decidisse virar-se. Nunca aconteceu. Remadores à frente e atrás, uma ou duas pessoas no centro (dependendo do peso dos presentes), mochilas soltas e botas semi descalçadas, just in case. A outra margem estava logo ali à frente, eram três minutos de percurso. Depois havia que voltar para buscar os restantes, cinco viagens no total, entre idas e vindas. Era quase um jogo. Quem vai agora? Nao, tu nao podes ir com X, tens que ir com Y. E enquanto isto durava, o sol começava a aparecer no horizonte, enfiando com precisao no continuar da linha do rio e anunciando sem vergonha o seu espectáculo de luz. Remando sentada ao nível da água castanha do rio, como que mergulhada nela sem me molhar, sentindo passar a corrente enquanto obedecia às ordens da Romi “derecha, izquierda, ahora clava a la derecha…”, vendo a margem lodosa do outro lado aproximar-se, o canavial verde fresco que nos recebia na subida e as cores do céu que, sem pressa, se iam revelando e dando lugar umas às outras, substituindo sem ciúmes os reflexos violeta pelos rosa e estes depois pelos laranja, numa entrega tal de luz que só as nuvens fôfas deste lugar sabem receber, absorvendo eu todos esses detalhes com olhos ainda sonolentos, só restava encolher os ombros e render-me à evidência: sou um fragmento ínfimo de uma riqueza incompreensivel; e agradeço todos os dias o facto de sentir espanto.

O trabalho na ilha era igual ao que antes tínhamos feito na EBCo e, para além de ter andado a ibuprofeno alguns dias para aguentar a contractura muscular no pescoço, tudo correu sem novidades de maior. A Andrea deixava-se dormir e ressonar durante a sesta dos macacos, o Marcelo nao se calava e nao dava um minuto de sossego, os bichos mantinham a habilidade de desaparecer silenciosamente muitas vezes, dado que se mexiam tao pouco e tao devagar que acabávamos a olhar para o lado e a pensar na morte da bezerra (é que movimentos destes a quinze metros de altura, no meio da folhagem das copas, tornam a coisa realmente complicada).

A povoaçao, Isla del Cerrito, é uma das várias que, nos anos cinquenta, servia de cativeiro a leprosos. Passeando à noite, depois de jantar, em busca de cartoes para telefonar ou guloseimas para aconchegar a alma, encontravam-se esses edificios coloniais erigidos pelos ingleses, que antes haviam sido dormitórios, clínicas, áreas de convívio e também aquilo que agora, sem dúvida com boa intençao, foi convertido em biblioteca: o crematório. De fora, através das janelas, observam-se ainda os espaços dedicados aos caixoes, em género de prateleiras na parede. Por muitos livros que o preencham, a atmosfera neste lugar sente-se pesada.

Em toda a zona antiga vêem-se também pequenos carris que cortam a continuidade das ruas arenosas. Percebe-se que serviriam um comboiozinho do estilo daquele que une a Costa da Caparica à Fonte da Telha e suponho que a sua utilidade estivesse relacionada com a época do leprosário. Agora nao está activo.

Mas, apesar do peso destas memórias, nao se imagine que o lugar é lúgubre. Como é costume, depois da sesta, o comércio reabre entre as cinco e as dez. Como é costume, nestas terriolas, o reggaeton é rei e a batida faz-se sentir em cada esquina. Deambulam grupos de adolescentes, jovens maes com jovens crias, rapazes com os cabelos escuros puxados a gel para um dos lados, por cima dos olhos. Sentam-se à porta das casas comadres tomando tereré. Tudo está vivo, soa, passeia de bicicleta! É uma sensaçao agradável que nos chega.

6 comentários:

Unknown disse...

Não posso crer, o primeiro comentário. LOL que gigantesca honra. Pelo que vejo é de facto um ambiente muito diferente daqueles transcritos do meio do mato. É talvez um passo à ambientação da civilização. Baby steps, baby steps de volta à languidão deste país. Já sabes quando voltas?

Aline Cortez disse...

Não é propriamente um comentário ao post, mas aproveitar este meio para informar os leitores do que já se vai passando lá para os lados da Argentina.
Imagine-se uma pobre e vieja Mãe ao telefone com sua lindinha (cariño de su alma) tentando a hablar su mejor castelhaño.
Verdad que era de grande calidad.
Madrezita , ufana, pergunta a alturas tantas: “? Te gusta mi castelhano?”.
E não é que a monera contesta “Espanhol? Estavas a falar espanhol? Não dei por nada, parecia o teu Português de sempre!"

E era um portinhol esforçado !

Ines S disse...

Sara, fica ai ate Julho... que eu vou te visitar. Maio esta cada vez mais complicado. estou em fase critica de tese e o facto de nao ter programado logo a viagem pra Maio, fez outros planos aparecerem. (compoe-se um projecto de teatro em Portalegre, durante uma semana em Maio - um revival em tons de despedida, do qual nao me apetece nada abdicar...)
Beijo e boas remadas! e boa Pascoa!
mas fica.fica.fica! e depois volta que ta tudo cheio de saudades!!

Unknown disse...

Olha é verdade, tive nos anos da miuda dos lobos, com as caras dos burriqueiros e parece que este ano eles adiantaram aquilo para Julho, penso que é para a ultima semana.

Beijos

C.M. disse...

Ai chica, que ahora é que me saltou a inveja cá de dentro!
Que vontade de estar num lugarzito assim, com raggaeton, putos de cabelo á banda, lugares com história estranha e monos de vida diferente...muy bueno!
Gostava de ter tempo de vida para poder experimentar a vida assim, com a diferenciação do biólogo mas vivida na expressão mais básica...ai.
Hoje estou particularmente invejosa, talvez seja o cansaço, talvez seja outra coisa qualquer. certo é que gosto de te ler, adoro as tuas descrições, mesmo quando não me sinto capaz de te comentar.
So, please, keep us posted!
Un besito

joao pestana disse...

acho q tua "ex-patroa" já tem anúnico a pedir novos voluntários para Agosto.
http://pin.primate.wisc.edu/jobs/listings/1528

vai um 2º round?

bj
jd