2 de setembro de 2008

terceiro

Aterrei ontem de manhã em Foz do Iguaçu. As malas foram as primeiras a sair, provavelmente porque fui a última a entrar. Os brasileiros têm um modo diferente de fazer o check in, que eu não dominei por completo – está visto – e só quando ouvi as hospedeiras de terra perguntar umas para as outras “fechamos Iguazu?” é que percebi o que se passava. Desatei a esbracejar e a dizer “esperem, esperem, também vou!”. E, muito a correr, lá consegui vir. O voo dura um instante. Várias vezes agradeci em silêncio à Sofia por me reservar um lugar à janela porque as vistas são fantásticas. Ao altifalante o comissário anunciou o pequeno-almoço, enumerando todas as bebidas que iriam servir. Café, café com leite, suco de laranja, coca-cola, coca-cola zero (note-se o pormenor) e guaraná. Decidi pedir um chá, só para contrariar. E a hospedeira respondeu-me, com olhar preocupado: só tem chá quentchi. Hum… Controlei alguma vontade de rir. Nem me ocorrera que pudesse ser frio.

À medida que nos aproximávamos do destino e o avião perdia altitude comecei a inquietar. Abaixo de mim continuavam os talhões de terra mexida, mais ou menos coloridos, com geometrias imperfeitas, mas de floresta via apenas umas manchas aqui e ali. Muito poucas. Será que a mata, afinal, era mais um fragmento que outra coisa? E onde andava o rio para me nortear? Foi assim que, de repente, criando uma linha bem definida no solo, o cultivo deu lugar às copas das árvores. Um espesso manto verde em que a distância parecia congelar as plantas em ligeiros relevos pétreos. Colei a testa ao vidro. O rio serpenteava já por ali e, neste nosso mundo tecnológico, não tirava da cabeça a imagem do Google Earth do local. Afinal estava correcta.

Aterrei em Foz do Iguazu e, saindo para a pista, levei com uma aragem húmida mas bem fresca no corpo. Obrigou-me a vestir a camisola, o que me deixou algo apreensiva dado ter trazido apenas uma (para improvável noite fria, julgava!). Agora talvez tenha que ir ali à cidade soltar uns pesos para dar repouso ocasional à dita camisola e manter-me odorificamente aceitável aos demais. Bem, mas falando em cheiros, a que cheira esta terra de onde escrevo? Cheirava, logo ali no aeroporto, a terra molhada. Sem mais complicações, era só isso, um delicioso cheiro a terra molhada! Senti-me realmente contente por não ter que procurar definições mais rebuscadas. Claro que também cheirava a plantas, plantas para nós exóticas, mas como o aeroporto estava bem ajardinado com relva e pequenos canteiros, a vegetação mais distante ficou mascarada. Relva e terra molhada, embora mais adocicado do que seria na Europa.

O Juamilson, guia turístico conhecido dos tugas paulistanos, estava à minha espera à saída. Muito prestável, foi buscar o carro para que pudéssemos seguir viagem. Era um brasileiro muito amável, pelos cinquenta anos de idade, com quem aprendi qualquer coisa sobre a história do local, a zona das três fronteiras e a relação entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai. Sobre a dificuldade que os poucos índios que sobram têm para se adaptar ao nosso estilo de vida. Sobre o que há por fazer no Brasil e sobre o que se faz a mais. Acabou por ser uma viagem cultural. Pedi-lhe ainda que passássemos na cidade para procurar botas de borracha, o que fizemos tanto do lado brasileiro como depois em Puerto Iguazu, mas do meu número só encontrámos botas amarelas. Um mimo para andar na floresta! Daí que ainda não tenho esse veículo todo o terreno para a macaca aventura.

Finalmente chegámos ao parque. À entrada disse a uma guarda-florestal robusta e sorridente, que procurava a Annie, a americana que estudava os caí. Disse-me que sabiam que eu vinha, o que me tranquilizou, e que podíamos entrar e procurá-la no CIES, que é o centro de investigação cá do sítio. Uma estação de campo com três ou quatro edifícios baixinhos e muito húmidos, debaixo do arvoredo. Ao chegar lá perguntei de novo a uma argentina hippie se sabia da Annie. Não sabia, não tinha o número e informou-me que ela já não morava aqui. Onde está então?, perguntei-lhe. Em casa de um guarda do parque. Ora bem… não perde tempo! E eu ali especada, o Juamilson também, sem decidirmos o que fazer, até que ele sugeriu irmos almoçar para fazer tempo. Nessa altura é que percebi onde estava. A cinco minutos a pé, seguindo na direcção das cataratas, ergue-se, imenso, o Sheraton. Não entendo que raio de esquema permitiu construir assim um hotel dentro do parque. O Juamilson diz que na época da ditadura um endinheirado amigo do governo conseguiu comprar o terreno ao exército. Agora o conspícuo hotel vira-se para a mais impressionante queda destas cataratas, a garganta del diablo, e os seus hóspedes tomam banho na piscina e bebericam cocktails olhando para ela. Um pouco mais adiante fica a zona dos restaurantes e começam os percursos pedestres para visitar as cataratas. Foi num desses restaurantes que almoçámos, um self-service apetitoso em que desde logo me dei conta que evitar a carne vai ser algo complicado. Era buffett (bifê para os brasileiros, com ‘i’, sabiam?) Na zona central da sala tinham várias saladas e acompanhamentos. Numa mesa lateral os doces e a fruta. E ao fundo, atrás de um balcão, um che assava os nacos de bicho. O juamilson soltou um “cê tem qui provar essa carne argentina qui é uma delícia”. E, tendo ficado receosa que se ofendesse caso eu rejeitasse (já que a sugestão de restaurante fora sua), lá fui eu, engolindo em seco, implorar ao che que me desse um pedaço de lo más pequeñito… [posso imaginar as gargalhadas desse lado] Enfim. Ele achou que estava óptima, eu, desabituada e não-apreciadora, achei comestível. Eles fazem aqui um molho com ervas, meio picante, que se põe em cima e disfarça um bocado o sabor da carne.

Quando voltámos ao CIES, a Annie continuava sem aparecer. Daí que a argentina hippie me tenha dito qual seria a minha camarata e eu dei ordem de soltura ao Juamilson. Tirei as coisas das mochilas, fiz a cama, e fui a correr ver as cataratas. Está tudo muito perto. As cataratas deitam um constante ruído de fundo, como se estivéssemos na praia atrás das dunas. E chegar a um dos miradouros do caminho e, finalmente, vê-las é… poderoso! Difícil de descrever. Durante esse passeio senti-me dentro de um filme, como se fosse impossível que uma coisa assim realmente existisse. Além do mais, assim que começamos a ser envolvidos pela mata que rodeia os caminhos, somos assaltados por uma quantidade e diversidade de vida impressionante! Começa pelas borboletas de cores e padrões que não acabam, continua nas aves descaradas, de cantos muito diferentes daquilo a que estamos habituados, nos lagartos gordos que se colam às árvores, nas rapinas que nos passam quase em cima da cabeça e termina nos esfomeados coatis que percorrem o parque como rufias em busca de comida nos caixotes do lixo. Um deles, às tantas, decidiu que um bom sítio para farejar seria a minha mochila da máquina fotográfica. Escusado será dizer que corri para ele aos “não, não, nem pensar!” como se se tratasse de um cão.

Ao fim da tarde e de muita fotografia, voltei para cima onde, finalmente, encontrei as três americanas já juntas. À minha procura havia um bocado. E o que posso dizer delas? Os meus temores foram descansados. Passando as evidentes diferenças culturais – como as unhas dos pés pintadas de cores tão duvidosas que me é impossível adivinhar-lhes o nome – parecem-me bastante porreiras. As duas assistentes são um bocadinho mais novas que eu, têm 22 e 24 anos e, por dominarem mal o espanhol, ficam um pouco inseguras em situações em que têm que o fazer. Demo-nos bem, consegui dizer piadas de que se rissem e isso é o mais importante. Um entendimento humorístico! A Annie é mais velha, terá trinta e poucos e também é porreira, despachada e faladora. Quando me viram fizeram a cena americana dos abraços que me deixa um bocado constrangida, mas o mesmo já se tinha passado no Brasil - não me apanharam desprevenida.

Então, e como o namorado da Annie fazia anos e haveria um churrasco na casa deles, rumámos à cidade para comprar bedidas e extras. Eu e a Jen arriscámos uma lasanha de espinafres congelada.

No jantar foi aparecendo o pessoal do parque, o que deu muito jeito para os conhecer a todos logo no primeiro dia. Vários vivem aqui como casal (trabalhando ambos como guardas) e têm miúdos. A maioria é bastante mais velha que nós. Mas os argentinos são tão encantadores, simpáticos, brincalhões, que deixam qualquer um à vontade. Uns de traços índios, outros completamente europeus. Adoraram que fosse portuguesa e passaram o tempo a perguntar-me o que fazia tão longe de casa. Apareceu também um brasileiro que tinha vivido alguns anos em Cascais, gosta de fado e do Bairro Alto e considera a noite de Lisboa uma das melhores que já viu! [Incrível] Foi bom falar português ao fim de meio-dia a estrangeirar.

Reunimo-nos à volta da fogueira a ouvir um deles tocar viola e vários cantar músicas da região. Muito suaves, sentidas. À minha frente podia ver o cruzeiro do sul num céu completamente pintado de estrelas. A noite estava limpa e fria. E, descansada da ansiedade dos últimos tempos, suspirei esse alívio. Tem tudo para correr bem.

7 comentários:

ttk disse...

Ufa!!! Tanta emoção e tanta novidade em tão pouco tempo...como eu te invejo.
Pelas tuas excelentes descrições, agora já posso dizer que estive em S.Paulo e no Iguazu. Senti como se estivesse contigo,particularmente em Iguazu. Senti o cheiro,senti a húmidade,senti os bichos,vi as cores, e até senti o abraço das americanas..huumm!!!
Lindo, lindo,lindo. Está decidido, vou ter contigo.
Agora,esta de te ver rendida aos prazeres da carne...essa é que eu não esperava!!!!
Neste caso não se pode dizer que a "carne seja fraca" !!!

Não pares,quero muitos mais relatos destes.

Bjos grandes,grandes,grandes.
Manel

ttk disse...

Há livros em que ficamos com pena quando os acabamos de ler...apetece-nos mais...
É só para te dizer, que fiquei tão grudado no teu post que em dez minutos já o li 3 vezes.`
É que sinto-me mesmo aí !!!

Mais beijos
Manel

Aline Cortez disse...

Pois eu tenho-me levantado às 7 da manhã e vou ligar para "diasnaselva" enquanto fumo o meu cigarrinho.... (aproveitar enquanto o Papão está na Argentina).
Hoje o meu coração palpitou ! Tcharám..... Finalmente !!! Li, voltei para a cama, decidi que já tinha tido muita emoção para começar o dia e não fui à ginástica !
Claro que eu sou a "Mãmãi" e perco o discernimento se tu relatas mesmo muito bem, ou... .se.. eu sou a tua Mãe !
Escreve sempre que possas e te apeteça que haverá muitos de nós grudados (talvez não às 7 da manhã e de forma mais politicamente correcta sem cigarrinho). Quando for possível "uploada" fotas dos argentinos louros, giros com ar selvagem e sexy (lol)...e não só mas também dos capuchinhos e de ti.
Bjs
Aline

Aline Cortez disse...

experiência para ajudar a mimi

Micas ...que não a gata disse...

Não querendo repetir tudo o que já foi escrito aqui, Saroca, além de seres uma mulher de fibra que diga-se de passagem eu já suspeitava, estou extasiada com a tua descrição quer de S. Paulo quer de Iguaçu. Também já a li 2 ou 3 vezes. Até já se me humedeceram os olhos, vê lá tu!! Não sei se hei-de telefonar aos teus pais a dar-lhe os parabéns por terem conjugado tão bem os "astros" e ter feito brotar um rebento com esta beleza ou se pura e simplesmente to diga só a ti e te peça : Não deixes nunca de escrever o que quer que seja,(romance, crítica, humor) da forma simples, entusiasmada e sentida como o fazes aqui, e que leva esta tia Micas (que não a gata!!) e outras tias e tios por aí fora, a deliciarem-se com a mente e a viverem contigo estes momentos da tua vida. E sem mais sentimentalismos... que inveja me estás a fazer, Sarita! Dava muito por ter menos uns anitos e poder estar aí contigo a partilhar essa experiência. Oh miúda, mereces que tudo te corra melhor do que desejas!!!
Apesar de não te teres despedido de mim (ah! ah!) amanhã cá estarei. Entretanto hoje deixo-te aqui um beijo enorme e apertado.

Mariana disse...

A Anita está mesmo na floresta. =) Agora sim, sinto que tás noutro mundo que não o meu. Mas sabes que ao ler isto o que sinto é que tu chegaste a casa. Chegaste ao teu mundo.
Roupa humida dentro de sacos de plástico, comer carne, ter calor, ter frio, falar outra lingua, o que é isso para ti quando tás no meio de um verde imenso, cheio de seres vivos que não o homem. Sem betão, sem estradas, sem carros a estragarem-te a paisagem e a poluirem-te o ar. É o paraiso do Saroko. :)
Estamos todos é a espera de reportório fotográfico. Sim, porque isto de ler é muito bom mas com fotografia à mistura ainda melhor.
BEIJINHO MUITOOO GRANDE.

sara disse...

bem, que me babo!! nao eh caso para tanto, senhores. :)

mesmo a serio? muito obrigada por virem aqui. eh tao bom ligar-me ah net e ver que houve feedback do outro lado do mar... ainda nao me deu para o saudosismo, mas ha-de dar. por enquanto tudo eh maravilha.

um beijinhos especial para a "micas... que nao a gata", de quem nao me despedi porque os ultimos dias em lx foram o caos, e que deixou uma mensagem tao inesperada. obrigada. vou tentar nunca deixar de fazer as coisas de que gosto. escrever, fotografar, explorar... se algum dia me esquecer, espero que esteja ca para me dar um carolo!

aos outros tres,
bom, o sangue corre nao eh? tenho imensas saudades. sei que ficam contentes por mim, tristes pela ausencia, mas nao sei o que fazer quanto a isso. espero que todos nos moldemos bem ah situacao. confio que sim. :) eh realmente muito bom fazer o que se gosta. miss you all e aos nossos desvarios
bjs grandes