4 de março de 2009

vigésimo segundo

Muito tempo sem dar notícias, muita actividade, não me levem a mal.

Tinham passado alguns dias depois de a bomba rebentar e viajaríamos decididas aos Esteros del Iberá. Meia colapsada com as mudanças drásticas no que estava por vir, senti-me em transe até à última. Ocorreu-me preparar a mochila e tudo o que seria necessário para acampar na noite de véspera, lás para as onze tardias. Havia também que sacar tudo o que era nosso do quarto que era nosso porque, em quatro ou cinco dias, deixaria de o ser. Assistentes novos viriam para nos substituir. Teríamos que deixar tudo no laboratório, on hold até voltarmos, e entrar nesse quarto que havia sido nosso e que, por uma noite mais, ainda o seria, sentiu-se como um bofetão. Uma ausência de roupa pelo chão, de livros empilhados, paredes agora nuas que se queixavam um pouco do frio, prateleiras vazias que nos miravam desconfiadas, como se as tivéssemos traído e nós ali, meio sem querer ver, meio em silêncio, meio a querer falar sem voz. A Jen ofereceu um pacote de yerba e outro dos meus alfajores preferidos, para que levássemos connosco. Um gesto significativo numa noite chocha. Creio que chuviscava. Ou talvez não.

Um dia e meio depois de termos saído – porque a Argentina é um país bem grande e não é que fôssemos de carro – chegámos a Pellegrini. Para o conseguir, houve que percorrer oitenta quilómetros de terra batida, um acesso que não se pode considerar fácil. Rotas de cansaço, caímos no meio da siesta, quando a povoação parecia deserta e o calor me resulta aqui difícil de descrever. Debaixo dos gritos das cigarras, restou-nos procurar um copo de água, uma sombra e esperar.

Os esteros são zonas alagadas, cujas lagoas se estendem por centenas e centenas de metros, albergando uma fauna imensa de aves, peixes, répteis e mesmo mamíferos. Não é complicado ver carpinchos, os parentes gigantes dos porcos-da-índia, que deambulam pelo parque com o focinho colado ao chão a comer erva ou se banham nos charcos e lagoas, deixando apenas a cabeça de fora. Vêem-se também aves de todo o tipo, jacarés e (para nós o ex-libris) bem pachorrentos macacos-uivadores!

Entre o pueblo e as instalações da reserva, onde foram criados os trilhos para as pessoas passearem, existe uma lagoa. É preciso atravessá-la através um caminho de estrada laranja que leva a uma pontezita metálica e, de novo, do outro lado, à continuação do caminho laranja. Esta travessia acabava por ser feita por nós mais do que uma vez ao dia e encontrávamos sempre qualquer coisa interessante para ver. De manhã cedo, quando o sol se levantava, as aves eram aos milhares. Ao entardecer, as cores do céu – que além de ali parecer ser infinito, com as nuvens baixas a pairar, ainda se espelhava na água parada – obrigavam-nos a sentar nos muretes laterais do caminho, em choque, indignadas com tanta beleza. Amarelos, laranjas, violetas, fúcsias, azuis fortes de nuvens tormentosas e também brancos das de chantilly… Tudo se juntava ali em jeito de celebração ao dia que havia findado. Foram mesmo os céus mais impressionantes que já vi.

A reserva é atravessada por uma estrada. De um lado a extensão da lagoa, paisagem bem horizontal salpicada por pindôs; do outro, uma mancha de floresta diferente daquela a que já me habituei, uma floresta baixa e onde por todo o lado se encontram epífitas penduradas nas árvores. Ali as plantas parecem respeitar-se mais do que em Iguazu e deixam espaços entre si, permitindo ver um pouco mais de chão e facilitando os movimentos. As copas são largas e unidas umas às outras e oferecem uma sombra bem cerrada, criando uma sensação de tranquilidade, de sossego absoluto, como se se tratasse de um gigante jardim muito bem cuidado. Foi nesse estranho silêncio que sentimos, quase por magia, movimentos em cima. Lentos. Algo grande esticava-se entre dois ramos, num equilíbrio complicado. Dobrámos o pescoço para o ver com atenção e lá estava um caraya. São os primatas mais preguiçosos que eu já vi. Sentam-se e descansam durante horas a fio e praticamente não fazem movimentos rápidos. Alimentam-se apenas de folhas, o que é provavelmente o motivo para se comportarem deste modo. É que o verdinho não dá muita energia. Chegámos a passar duas horas sentadas no mesmo lugar a olhar para eles a comer. Isto num Cebus apella seria absolutamente espantoso!

Montámos a tenda no terreno de uma família amável. O senhor Mario, a mãe, Dueña Tomasa, mais as irmãs e todas as demais caras que se sentavam cá fora ao final da tarde e nos miravam com satisfação. Pellegrini é um lugar estranho que se supõe direccionado para a conservação da reserva e para o turismo, mas onde encontrámos lodges às moscas misturados com gente local muito humilde, que faz a sua vida bem devagarinho e olha como quem aceita esse facto. Não se encontra um supermercado, uma caixa multibanco, sequer uma praça central. Acho que estas aldeias não têm o hábito da centralidade. Todos os caminhos são de terra batida e vão dar a outros caminhos iguais, a outros terrenos por cultivar, a outras casa mal terminadas e remendadas a zinco. Às vezes ocorre passar um homem a cavalo.

Já não sei quantos dias ficámos nos esteros mas foi uma viagem que valeu bem a pena do caminho. Acho que as fotos o demonstram…



´















8 comentários:

ttk disse...

BRUTAIS !!!
"lindessissimas" as tuas fotos.
das melhores que tens tirado.
gostei muito, "prontos" !!!

Bjinhos e tira mais...

Unknown disse...

Eheheh excelente. Olha que bem que soaram os gritos das cigarras, as capivaras (da familia dos roedores que tão bem conheço ;-)). Fotos deslumbrantes, por momentos deu para viajar naquela estrada laranja, que podia ser de tijolos amarelos, lollol. E aí calaçavamos os nossos sapatos encarnados. Lol.

Beijo

José

Inês disse...

"The end is the beginning", já os outros cantavam.
E que mudança de cenário! Fotos lindas.
Bom regresso à floresta.

Bjs,
I

Aline Cortez disse...

Têm razão, as fotas estão muito boas. Gostei muito.
Eu, imbuída do meu papel de progenitora, na devido altura já tinha cirandado pela internet e tinha tido o previlégio de ver fotografias de Ibera.
Com a minha pouca sensibilidade, pensei: água, tipo charco. Espera lá .... isto faz-me lembrar qualquer coisa ! Hum ! E pronto, descobri ! Parece a Barragem de Montargil. Claro que cá faltam as capivaras e os macacos "ululantes", mas talvez se possa dar um jeito.
Agora confirmo. A povoação de Pellegrini é igual aos Foros do Arrão !! Senão vê:
"Pellegrini é um lugar estranho ...... mas onde encontrámos lodges às moscas misturados com gente local ...., que faz a sua vida bem devagarinho e olha como quem aceita esse facto. Não se encontra .........., sequer uma praça central. Acho que estas aldeias não têm o hábito da centralidade. Todos os caminhos ... vão dar a outros caminhos iguais, a outros terrenos por cultivar, a outras casa mal terminadas e remendadas a zinco".
Vês ?? Um pouco mais de fauna na barragem e turismo no Arrão e até se pode ter a sensação de estar na província de Correientes !
Bjs. Fico à espera do resto.
Tu Vieja

sara disse...

ttk,
obrigada, também fiquei orgulhosa destas! era 1 sitio lindo. o por-do-sol era tao fantasticamente fantastico que ficou mesmo so na memoria. como vai tudo? :) bacci

txico,
vivam as estradas laranja e as de tijolos amarelos! bjs

ines,
obrigada, ja tou de volta a iguazu mas, em breve, partindo de novo... dps conto

aline,
para quê pôr pellegrini no arrao, se isso faria com q dois lugares no mundo fossem iguais? que desperdicio... :) cada um com as suas particularidades. bjinhos

Jose Ruah disse...

Pese embora não a conheça sigo com atenção o que escreve e os relatos de além Atlantico.
Confesso que aguardava com expectativa elevada o seu 22º texto e não fiquei frustrado.
Como brinde uma colecção de fotos fantasticas. COntinue

C.M. disse...

Ora parece que o "grito de Iguazú" te inspirou passeios verdadeiramente fantásticos, muito boa escrita e fotos DO MELHOR, quase que dá para agradecer á mal amada Annie???lol
Adorei a descrição e as fotos estão mesmo demais!
Claro que fiquei invejosa mas desde que a M. cá de casa me explicou a diferença entre a "inveja boa e a inveja má" fiquei muito mais tranquila,he, he.
Beijoca

Candida Cortez disse...

Que belas fotos!Que viagem,ou antes,exploração fantastica!Estou sem palavras mas feliz por voltar a acompanhar,de longe,essa aventura.Beijo grande avó Tita